domingo, 26 de outubro de 2008

Tantra Vidyá


. primeira parte .
[edição de internet]
. Apresentação .

Ensina-se ao sádhaka a não pensar que somos um com o Divino apenas na Libertação, mas que o somos aqui e agora, em cada ato que realizamos. Porque em verdade tudo isto é shakti. É Shiva que, como shakti, age dentro e por meio do sádhaka [...]. Quando isto é compreendido em cada função natural, então cada exercício deixa de ser um mero ato animal e torna-se um rito religioso, um yajñá. Toda função é parte da ação divina (shakti) da natureza. Assim, ao tomar uma bebida na forma de vinho, o víra sabe que este é Tárá Dravamayí, ou seja, ‘a própria salvadora em forma liquida’. Como é possível – diz-se – que tal forma faça algum mal àquele que verdadeiramente vê aí a Mãe Salvadora? [...] Quando o víra come, bebe ou realiza o ato sexual, nada disso faz com a idéia de ser um indivíduo que está satisfazendo suas próprias necessidades limitadas, como um animal que furta da natureza – por assim dizer – o prazer que sente. Mas pensando neste prazer ele é Shiva, e afirmando: Shivo ham, Bhairavo ham, i.e. ‘Eu sou Shiva’. – Sir John Woodroffe

Om Náth Uttara Kaula Sampradáya!
ESTE texto é o primeiro de uma série de estudos acerca da tradição tântrica em todos os seus contextos. Na verdade, uma analise das religiões tântricas e seu impacto tanto nas antigas sociedades a qual estava inserida no universo indiano, quanto nos dias atuais. Contudo, uma série de estudos como estes não é fácil. A investigação das origens do Tantra e seu desenvolvimento é um processo histórico de difícil rastreamento, por causa da complexa interação entre as diversas tradições que lhe deram origem e à falta de registros confiáveis. Mas acredito que a importância em se empreender um estudo assim está na demonstração de como o Tantra foi se desenvolvendo no seio das tradições da Índia na medida em que assumia uma postura própria até se tornar uma das mais bem elaboradas exposições teológicas e metafísicas do continente pan-indiano.

O Tantra é uma ciência e um caminho espiritual complexo, e para sua compreensão é necessária uma visão profunda de sua alquimia, metafísica e teologia, sem o que a compreensão dos rituais secretos se confundiria com a milenar tradição do sexo prazeroso descrita nos kámáshastras,[1] e com os quais o Tantra nada tem a ver. Infelizmente, a maioria dos textos escritos para a divulgação popular somente trata do ritual sexual, denominado ritual secreto (rahasyapújá), com pouca ou nenhuma atenção aos aspectos fundamentais do Tantra, fazendo com que o sacramento ritualístico perca seu sentido, dando lugar a prática sexual não orientada e distinta do verdadeiro espírito tântrico. Portanto, o estudo do Tantra pede equilíbrio entre todos os aspectos, de forma a proporcionar ao estudante uma visão correta de seus fundamentos, tal como foram expostos pela tradição.

O ocidente fora inundado por escolas de cunho neo-tântrico que se afastaram, por falta de compreensão por parte de seus difusores, da verdadeira essência da tradição tântrica. Inúmeros livros foram escritos com a idéia disseminada do sexo hiper-orgiástico, o que levou a degeneração da tradição conforme difundida nas escolas, cursos e workshops. O resultado é o que vemos: clubinhos pseudo-tântricos que se pretendem passar por tântricos espiritualizados e que são nada menos, na melhor das hipóteses, uma terapia de duvidoso resultado. Um hedonismo puro e simples que prende o buscador a forma ao invés de impulsioná-lo a sua Real Essência. Assim, há de ser enfatizado que a leitura de livros, por mais pormenorizados que sejam, não substitui a verdadeira iniciação (diksha) e as instruções de um guru qualificado. “Assim como os perfeitos (siddhas) e os heróis (víra), os Kaulas [...] devem dominar perfeitamente os seus sentidos, o seu pensamento, superar suas dúvidas e medos, ter um coração puro, livre da cobiça e do apego, e ter recebido de um Guru Real, de linhagem fidedigna, a iniciação. [...] Somente nestas condições os Kaulas podem vivenciar, protegidos por um marco ritual, as experiências proibidas ou desaconselhadas aos homens ordinários (pashu) dominados pela rotina e pela cobiça.”

Todos os grupos e sub-grupos que apareceram de alguma forma conectados a tradição tântrica foram rechaçados e excluídos da sociedade pelas autoridades bramânicas ortodoxas. Há uma razão! Existe um traço peculiar e essencial na tradição tântrica que a distingue das filosofias precedentes: seu ideal é alcançar a iluminação exatamente por meio daqueles objetos que os sábios anteriores procuravam afastar de suas consciências. Neste processo, o candidato à sabedoria não busca atalhos para evitar a esfera das paixões – reprimindo-as em seu interior e fechando os olhos para suas manifestações exteriores, até que, purificado como um anjo, possa abrir os olhos com segurança e observar o ciclone do samsára com o olhar imperturbável de um fantasma desencarnado. Muito ao contrário, o herói (víra) tântrico passa diretamente através da esfera de maior perigo.

O princípio essencial da concepção tântrica é que o homem, em geral, tem de ascender através e por meio da natureza, sem rejeitá-la. Quando caímos no chão – diz o Kulárnava Tantra –, temos de nos levantar com a ajuda do próprio chão. O mesmo texto declara que atinge-se o céu pelos caminhos que levam ao inferno. O prazer do amor, o prazer do sentimento humano, são a glória da Deusa em sua dança que produz o mundo, a felicidade de Shiva e sua shakti em sua eterna realização de identidade. A criança passional deve dissipar o senso do ego. Assim, o mesmo ato que antes era uma obstrução, torna-se agora a maré que o leva a realização da beatitude absoluta (ánanda). Essa maré de paixão é a água batismal que lava e faz desaparecer a mancha da consciência do ego. Seguindo o método tântrico, o herói (víra) flutua além de si mesmo na corrente agitada, embora canalizada.

Portanto, a grande fórmula tântrica – tão diferente daquelas utilizadas nas primeiras disciplinas do Yoga – o Yoga (a união da consciência empírica com a consciência transcendental) e o bhoga (o ‘gozo’, a experiência do prazer e do sofrimento da vida), são o mesmo. O bhoga é o Yoga!

Mas é necessário um herói (víra) para confrontar e assimilar, com perfeita equanimidade, toda maravilha da Criadora do Mundo – para fazer amor, sem reações histéricas, com a Força vital, que é a shakti de sua própria natureza integral. As ‘cinco coisas boas’ (pañcatattva), que são as ‘coisas proibidas’ dos homens e mulheres comuns do rebanho, servem de via sacramental para aquele que não apenas sabe, mas que também sente que a Força Universal (shakti) é, em essência, ele mesmo. No Tantra é possível adorar a Criadora do Mundo utilizando seus próprios procedimentos. O ato sexual (maithuna), que constitui o mais elevado rito espiritual, nunca pode ser realizado por um pashu (o ‘gado’, o animal humano que faz parte do grande rebanho, que deseja, teme e goza de maneira animal e vulgar), mas somente por um víra (herói) que sabe ser idêntico a Shiva.

Como fruto do rito, liberamo-nos da ilusão, e esta liberação é a maior dádiva de Kálí, a formosa e obscura Deusa Dançarina do crematório.

. I .
. Substrato Primitivo .
A TRADIÇÃO tântrica tem suas sementes míticas e suas raízes históricas nas primeiras comunidades agrícolas organizadas no território indiano em aproximadamente 8000 a.C. Estas antigas comunidades, conhecidas historicamente com a denominação de Nagas, Nishadas ou Protoaustralóides tinham sua cultura estruturada no animismo e no totemismo, sendo a serpente (Naga) o principal símbolo reverenciado em sua tradição. A serpente, representação simbólica da virilidade, do conhecimento e da magia, aliada aos espíritos das árvores, rios, montanhas, pedras e animais formavam o panteão mítico que em seu dinamismo influenciava os ritos domésticos e traçava as fronteiras do desenvolvimento religioso e filosófico dessas comunidades.

Muitas das características anímicas e totêmicas desses antigos povos indianos se encontram perpetuadas, através do tantrismo, na cultura religiosa e filosófica moderna da Índia.[2] Podemos encontrá-las nos diversos ritos de oferenda, técnicas meditativas, práticas corporais, cânticos, nas especulações filosóficas em torno dos ciclos de existência do universo (samsára e yugas)[3] e do ser humano (dharma, karma e moksha).[4]

Estudiosos alegam que com o advento da civilização do Vale do Indo, parte das primeiras comunidades aborígines foram assimiladas, enquanto outros grupos retiraram-se para regiões mais remotas dando continuidade às suas tradições. Essa civilização, também conhecida como cultura Harappiana ou Civilização Drávida, ocupava uma grande área que se estendia do Vale Indo ao Ganges, descendo até a costa da cabeceira do Mar de Omã, na atual fronteira entre o Irã e Paquistão, continuando até o golfo de Cambay e chegando bem próxima da moderna Mumbay (Bombaim). Até os anos vinte de nossa era não haviam estudos arqueológicos que comprovassem as inúmeras referências populares a essa civilização.

Em 1924, duas grandes cidades capitais foram desenterradas pelos arqueólogos: Mohenjodaro e Harappa. Segundo os pesquisadores, essas cidades eram meticulosamente planejadas e suas construções demonstram um alto refinamento social. Grande número de estatuetas e sinetes, encontrados durante as escavações, indicam a tendência dessa civilização ao culto dos elementos femininos da natureza, à Deusa – Mãe e à utilização das práticas do Yoga. Pelas características simbólicas das representações encontradas, pode-se levantar a hipótese que essa civilização possuía uma estrutura social e familiar de orientação matriarcal, de natureza não guerreira, voltada para as artes e os estudos filosóficos.

Ainda são discutíveis as causas da possível decadência e ruína final dessa civilização. Pesquisadores responsabilizam as inundações catastróficas do rio Indo, as conseqüências da desertificação e os movimentos sísmicos. Contudo, a teoria e hipótese de um choque étnico, cultural e social com os povos de língua indo-européia (áryas) entre 1800 e 1500 a.C. já fora descartada. Contudo, existem indícios que o declínio desta civilização ocorreu por razões estritamente econômicas. Nós voltaremos a este ponto.

Na civilização do Vale Indo alguns elementos representativos da tradição tântrica eram evidentes: o culto da Deusa Mãe (deví) e o princípio feminino (shakti), associado às técnicas do Yoga. Mas nós precisamos ir aos primórdios do substrato tântrico para que possamos localizar sua origem, pois é na busca pelas sociedades primitivas cuja orientação social fora marcada pelo princípio matriarcal, que podemos rastrear as bases daquilo que com o tempo fora mencionado por muitos estudiosos como o sinônimo do tantrismo em si, a tradição vámácára.[5]

Nos primórdios desta civilização, quando o papel do homem era desconhecido no processo de fecundação, i.e. quando nenhuma conexão era sabida existir entre a gravidez e o intercurso sexual, a orientação social, política e religiosa estava centrada na figura da mulher, mais especificamente, da mãe. Neste tipo de sociedade matriarcal, a mãe representa o principio de liderança e ela é o único laço de união com a família. O pai não possuía parentesco com seus filhos. A mulher se encontrava em uma posição especial pois a ela era atribuída uma aura mística de extremo poder que lhe dava o status de líder da comunidade. Com sua inexplicável natureza e inúmeros atributos como o fenômeno da menstruação, a gestação, o dar a luz a uma criança e a amamentação, ela tornava-se uma pessoa misteriosa e fascinante, mantenedora da chama espiritual de seu clã.

O papel da mulher na vida religiosa, sua identificação com a Deusa Mãe, o simbolismo de vários conceitos e relações atribuídos à mulher, a insistência em um culto de orientação sexual devotado a vulva (yoni) como fonte de adoração e de toda felicidade, a função da mulher como a sacerdotisa ou xamã, a idéia de superioridade da Deusa sobre o Deus, o conceito de Ser Supremo como feminino e etc. possuíam uma base social muito consolidada. As deidades femininas eram alocadas aos níveis mais elevados entre todos os deuses, e isso dependia da natureza da organização social em que a posição da mulher era assegurada. A chefe do clã adorada como mãe era a ligação espiritual com a Deusa Mãe e portanto seu status era a suprema posição como guia do grupo.

Assim, a superioridade da Deusa sobre o Deus, da sacerdotisa sobre o sacerdote pode ser explicada nos termos de um sistema social no qual a maternidade possuía mais valor que a paternidade, onde a linha de descendência era traçada a partir da mulher e não do homem.

Existem referências a sociedades matriarcais na Índia antiga nas literaturas que descrevem os Strírájyas ou ‘reinos das mulheres’. Muitos destes reinos se encontravam na região norte do subcontinente indiano, mas há relatos de reinos cognatos no oeste e noroeste da Índia. Estudiosos se referem p.e. ao Reino de Pándya, nas regiões próximas a Kerala, onde vestígios de um culto orientado ao princípio feminino fora descoberto.

A parte de inúmeras referências nos textos antigos, se observarmos a organização social das tribos aborígines que sobrevivem na Índia, será percebido que muitas delas ainda possuem traços de um sistema matriarcal. Um exemplo de herança e descendência matrilinear com casamentos matrilocais pode ser encontrado entre os Khasis de Meghalaya. Esta comunidade aborígine reconhece a superioridade feminina aceitando as regras de descendência provindas exclusivamente da mãe. Apenas as filhas podem compartilhar das propriedades da mãe, sendo que a filha mais nova sempre fica com a maior parte compartilhada. Nos assuntos que competem à religiosidade desta comunidade, o sacerdote (lyngdoh) atua como um representante da sacerdotisa, e ele tem de deixar o seu ofício se não possuir uma sacerdotisa para auxiliar-lhe em seus deveres sacerdotais. Em outras palavras, ele deve ser completamente devotado a uma sacerdotisa que por algum tempo lhe acompanha em seus ofícios sacerdotais. Uma outra comunidade aborígine da Índa, os Nayar, são divididos em clãs matriarcais denominados maharís ou ‘maternidades’. Esta comunidade possui o conceito de família estritamente matriarcal, onde a linha de descendência se dá através das filhas, das filhas das filhas, e assim por diante. As crianças nascidas homens não são alocadas nesta linhagem familiar feminina, mas na linhagem do pai. Ainda, nesta comunidade, as mulheres possuem o direito de ter mais de um marido, e isso somente é possível em uma comunidade matrilocal, onde o esposo é concebido apenas como um visitante.

Elementos da cultura matriarcal são encontrados até os dias de hoje nos lares da maioria dos indianos. Isso é revelado pela sobrevivência de condicionamentos sociais como a herança e a descendência matrilinear, os casamentos e residências matrilocais e outros hábitos associados ao estilo de vida tribal indiano, os cultos e rituais dedicados a Deusa Mãe e os sistemas religiosos shaktas e tântricos cujo ponto de vista é orientado ao princípio feminino como a face do Absoluto. No campo das religiões tantricamente orientadas, a cultura matriarcal influenciou suas raízes tão profundamente que em algumas escolas do sul da Índia como p.e. o ramo shakta do Shrí Vidyá – que fora profundamente influenciado pela tradição Kaula – os sacerdotes seguem uma linha de sucessão matrilinear. Em outras palavras, a sucessão sacerdotal é determinada em concordância com o mátrvamsha, i.e. ‘linhagem materna’.

Com o processo de desenvolvimento social, o papel do homem foi ganhando espaço. Antes do desenvolvimento da lança não havia nenhum tipo de produção, apenas a apropriação de sementes, frutas e pequenos animais, e portanto não havia a divisão de trabalho. Com o advento da lança e as demais ferramentas de caça, o homem ganha uma responsabilidade, assume um papel, o de caçador. Por conseguinte, a mulher passa a se responsabilizar pelo armazenamento da comida e seu manuseio. Esta divisão tornou-se universal em todas as tribos que se baseiam na caça como meio de sobrevivência. Com a caça, veio à agricultura e a domesticação de animais, e com isso o papel do homem passou a ter uma definitiva importância na sociedade, pois a partir deste ponto iniciou-se o desenvolvimento pastoral que gradativamente evoluiria, dotando o homem com mais poder de decisão na sociedade. Este fora o foco da transição entre a descendência matrilinear para patrilinear. A partir deste momento a sociedade até então matriarcal passaria, gradativamente, ao patriarcado.

Mas essa mudança não ocorreu da noite para o dia. Muito tempo se passou até que o homem atingisse a autoridade central na sociedade, e isso somente ocorreu quando fora descoberto que ele era de fundamental necessidade no processo de fecundação.[6]

Com a nova orientação masculina vigente, foi necessário uma reorganização no sistema social. Enquanto muitas comunidades essencialmente shaktas e matriarcais eram absorvidas pela imposição dos cultos de supremacia masculina, outras preferiram se retirar e continuar sua tradição alheias as mudanças que agora ocorriam. Portanto, fora dentro de um espírito reformista que o Tantra fora formulado como uma tradição concisa em si, anos depois, após o declínio do Budismo e Jainismo, como veremos adiante.

A maioria das tradições tântricas prosseguiu com a orientação shakta, se desenvolvendo a partir de movimentos devocionais associados ao culto das deusas, que aos poucos foi incorporando ritos de celebração da sexualidade onde a mulher é percebida como uma representação física da Deusa Mãe, aquela que trouxe o Cosmos à vida, e seu corpo é cultuado como o cálice sagrado ou templo vivo da Deusa. Esta é uma das raízes do culto a vulva ou portal da vida denominado yonipújá, como uma forma de celebração da própria vida.

A shakti se manifesta na mulher. Quando o sádhaka se aproxima de uma sádhakí com reverência, pureza e devoção, ela pode o elevar a altura dos deuses, dizem os tratados da tradição. No Devíbhágavata (IX – I: 137-45) é dito que a mulher, como a manifestação do grande mundo das causas, deve ser adorada, respeitada e venerada. Quem lhe ofende está sujeito aos castigos de Prakriti, Mãe de Tudo; quem lhe propicia adoração é por Ela adorado. De acordo com o Páránanda Sútra (III: 64-5, 74-76, 80-81) a mulher é a encarnação de shakti, e não há dúvida de que ela é Brahman. Ela deve ser adorada com roupas, ornamentos e comida. Ela é Deus, o alento da vida, e a mais exaltada sobre todas as criaturas vivas. Ela nunca deve ser censurada ou enfurecida. No Shaktisangama Tantra (IV: 22), no Kálíkhanda (III: 142-4) e no Tárákhanda (XIII: 43-50) a mulher é considerada a manifestação da shakti. Ainda, de acordo como o Kulárnava Tantra (XI: 64-5) toda mulher é nascida no Kula da Grande Mãe e por isso deve ser sempre tratada com muita consideração.

Finalmente, o Ácárabhedatantra (XV: 33-36) diz que somente os mais exaltados seres se encontram dentro do movimento vámácára e que de acordo com sua doutrina, é prescrito que a mulher deve ser adorada com o ritual do pañcatattva, i.e. o rito dos ‘Cinco Ms’ e por khapuspa (menstruação e secreções vaginais), pois somente assim Párashakti (o Supremo Ser) será efetivamente encarnada no corpo da dútí (sacerdotisa iniciadora).

Inúmeras foram às tradições que se chocaram com o movimento tântrico desde os primórdios de sua manifestação. Em tempos modernos nós podemos p.e. citar o movimento conhecido como Bháktivedánta, a versão devocional e dualista do Vedánta de Shankaráchárya, cujo maior difusor moderno fora Swami Prabhupada (1896 a 1977 d.C.) em linha de sucessão de Shrí Caitanya (1486 a 1584 d.C.), grande expositor do movimento bhakta de louvor a Krishna, que entendia os tântricos como uma forma degenerada de culto.

O apelo e a aversão contra a tradição tântrica formulado pelo movimento Bháktivedánta chegou ao ponto de se afirmar que o Senhor Shiva, em toda sua opulência, somente aceitava mulheres em seu culto e por conta disso todos os adeptos tântricos tinham por meta se tornarem mulheres. Swami Bháktiankar registra em seu comentário de Krisnha, a Suprema Personalidade de Deus, cuja autoria é atribuída a Swami Prabhupada:

A ambição de todo seguidor do movimento tântrico é se tornar idêntico a Tripurasundarí, e um de seus exercícios religiosos é se habituar a pensar que Deus é uma mulher. Assim os seguidores da escola shakta justificam sua apelação baseados na crença de que Deus é uma mulher e portanto é a meta de todos se tornarem também uma mulher.
[7]

No mesmo texto, Swami Bháktiankar fala acerca dos Sahajiyás:

Os Sahajiyás também acreditam que em determinado estágio da evolução espiritual o homem se tornará mulher, pois ele jamais terá a experiência do verdadeiro amor enquanto não realizar a natureza da mulher em si mesmo.
[8]

Mas este é somente o tipo de apelo peculiar àqueles que acreditam que a tradição shakta está envolta apenas em lascívia, mistério, magia negra, superstições tolas e vulgares. Mas esta incompreensão pode, quem sabe, ter atingido seu ápice após a aparição de movimentos tântricos degenerados, o que degradou a imagem da tradição como um todo.

Existe uma lenda no Devíbhágavata em que Brahmá, Vishnu e Shiva foram transformados em mulheres após terem visto Deví em sua mais exaltada forma. Este tipo de lenda acerca da troca de sexo dos deuses proporcionou material de criticas contra o movimento tântrico assim como uma má interpretação de tradições obscuras que se intitulavam tântricas onde o sacerdote, no exercício de suas funções como sacerdotisa, exibia-se aos devotos em paramentos femininos.

Contudo, a tradição tântrica continua alheia a suas deturpações. Isso porque a verdadeira iniciação (diksha) é dada somente àqueles que tomam o céu por assalto e sem medo como o herói (víra), caminham por terras perigosas que para muitos é a via de queda onde somente existem pedras de tropeço.

Entre os tântricos, as xamãs – conhecidas como bhairavís –, e yoginís ocupam lugar fundamental. Na maioria das tradições elas são as iniciadoras. Os sete cakras ao longo do sushumnánádí são os assentos das shaktis que são concebidas nos rituais vámácára como a forma externa representada pelas sacerdotisas (dútís). Até mesmo entre os Sahajiyás a kundaliní é concebida como Rádhá, i.e. o Princípio Feminino vaishnava.

Em muitas das canções da escola filosófica dos ácháryas[9] em que o movimento Rádhá-Krishna é exaltado, são freqüentes as referências a várias forças femininas denominadas Candálí, Dombí, Shabarí, Yoginí, Nairámaní, Sahajasundarí e etc., assim como a referência da união entre o yogi e a personificação feminina de sua deidade.

Um escrito intitulado Jayadratha Yámala, que discute as doutrinas de várias escolas tântricas, menciona a pratica das Shakinís e Yoginís. Neste escrito encontramos referências as Dákinís, Rákinís, Lákinís, Kákinís, Shakinís e Hákinís como incorporações de carne e osso que posteriormente foram elevadas à condição de divindade. Há rumores de uma classe de feiticeiras e bruxas no Tibet conhecidas pelo nome de Lha-k’a, de onde o nome Lákiní é derivado. Os contos acerca destas feiticeiras abundam com referências acerca do conúbio sexual entre homens e divindades encarnadas na forma de sacerdotisas. Similarmente, as sacerdotisas da dinastia xamã – de bruxas – conectada com os Dags e Shákas, foram perpetuadas nos tantras como as Shákinís.

A partir do século V d.C., com o início das codificações literárias de alguns dos antigos tratados tântricos, transmitidos anteriormente somente pela tradição oral, a estrutura filosófica e prática do tantrismo adquire maior transparência. De forma simplificada, podemos abordar o tantrismo hindu através de três perspectivas: filosófica, comportamental e técnica. No aspecto filosófico, o tantrismo baseia-se em especulações que apontam o processo de criação universal como responsabilidade da Energia Primordial conhecida como Shakti. Este termo sânscrito é traduzido literalmente como “poder”, mas representa também o principio dinâmico que atua na produção de toda a matéria que compõe o universo e de tudo que nele existe. Também é sinônimo de esposa, feminino e mulher. A contraparte filosófica, ou binônimo, de Shakti é conhecida pelo termo Shiva. Este é o Princípio Primordial estático, impotente perante o poder de Shakti, mero espectador no processo criador, sinônimo de marido, masculino e homem. Para o tantrismo, Shiva e Shakti são um. Um sem o outro é Shava (cadáver), eles só existem em função de si mesmos. A dualidade é apenas aparente, uma distração de lílá (jogo, ou brincadeira) da Grande Mãe (Kulakundaliní) para se divertir e dar continuidade aos ciclos cósmicos da existência (samsára).

A transcendência dos princípios Shiva e Shakti leva ao ponto central, que é a própria Shaktikundaliní indiferenciada e resposta de tudo. Essas especulações do tantrismo deram origem aos inúmeros cultos às divindades femininas (devís) que hoje existem no contexto do hinduísmo.

A característica comportamental do tantrismo está centrada na transgressão de valores morais e sociais (desconstrução de estereótipos e clichês culturais e psicológicos) arraigados na cultura dominante indiana. Os textos, lendas e símbolos tântricos expressam vozes que contestam as estruturas rígidas patriarcais nas quais estão construídas as concepções de diferenças de casta, o papel social e familiar submisso da mulher, a ortodoxia e poder sacerdotal, a utilização depreciativa do corpo e da sexualidade e as normas e formas de se buscar o divino que excluem as “minorias” (castas inferiores, mulheres e etc.).

O tantrismo também desenvolveu técnicas (vidhis) e práticas (sádhanas) psicológicas e corporais que visam proporcionar uma vivência real, sensorial, aos seguidores de seus princípios. Nas práticas do tantrismo encontramos uma complexa metodologia que tem como objetivo a tomada de consciência e o domínio do corpo, da mente e das emoções; a manipulação das energias físicas e psíquicas humanas em prol do desenvolvimento de poderes paranormais (siddhis) e a utilização desses no processo mundano e espiritual; a união dos opostos e a transcendência da dualidade na imersão na Ultima Realidade.

. I I .
. A Literatura Tântrica & o Desenvolvimento de suas Escolas .
A LITERATURA tântrica é identificada em seu conjunto, nos meios acadêmicos orientais e pelos estudiosos da tradição indiana, pela terminologia de Tantra Shastra. Definir esse termo implica por trabalhar variáveis conforme as necessidades do contexto a ser complementado. Isto deve-se ao fato da terminologia sânscrita, na qual se encontram em sua primeira codificação literária os textos tântricos, ter como características uma ampla gama de significados, às vezes totalmente distintos para cada palavra. Deve-se também à própria natureza metafórica da tradição tântrica. Assim sendo o termo Tantra pode significar uma urdidura ou trama de um tecido, a parte principal de um sistema filosófico, a origem de uma tradição, ordem (vidhi), regulação (niyama), escritura (shastra), doutrina, regra, teoria ou tratado científico. Em princípio, qualquer tratado secular pode ser denominado como um tantra, embora nem sempre seja tântrico na acepção da palavra.

Sob o aspecto etimológico e de acordo com a tradição espiritual da Índia, o termo tantra[10] é tradicionalmente derivado da raiz verbal sânscrita √tan, com a adição do sufixo de instrumentalidade tra, significando assim aquilo que estende, expande ou engrandece.[11] Outra denominação dada ao termo fora expressada pelos sábios Vácaspati Mishra, Ánandagiri e Govinsdánanda, os quais consideraram a raiz verbal √tatri ou tantri como o sentido de origem de conhecimento. Portanto, Tantra é aquilo que expande ou engrandece o conhecimento pela vivência do espiritual e pela maestria na arte do ritual e da magia.

De acordo com algumas escolas, os tantras são conhecidos mitologicamente como Srauta Shastras, escrituras reveladas que não tem origem no tempo cronológico e nem são produtos da mente humana ordinária. Vistos como tendo origem divina, eles teriam sido doados aos humanos através da tradição espiritual e são tidos como eternos e imutáveis, “eles são o que eles são – pura e simplesmente”.

Esta visão parte do pressuposto de que o Tantra é de origem divina, sendo ele atribuído ao próprio Senhor Shiva como Ádi-Nátha,[12] o primeiro mestre e praticante do tantrismo. Entretanto, atribuir a Shiva a origem do Tantra é uma forma de considerar esta tradição como uma revelação, transmitida por Ele aos seres humanos por intermédio dos rishís (sábios videntes).

Essa visão da origem revelatória do Tantra é corroborada com a afirmação de que o mestre Matsyendranáth teria sido um dos primeiros a expor os ensinamentos tântricos após recebê-lo do próprio Shiva. Entretanto, Matsyendranáth também é uma personalidade semítica, em que fatos possivelmente reais e descrições lendárias se mesclam, gerando uma biografia que deve ser considerada com algumas ressalvas.

Segundo considerações históricas, Matsyendranáth fundou por volta de 950 d.C. à escola Yoginí Kaula, ano também atribuído ao nascimento de seu maior discípulo, Gorakshanáth. Assim, tanto um quanto o outro têm grande importância no contexto histórico do tantrismo e na solidificação do Hatha Yoga, principalmente porque eram membros do movimento dos Siddhas ou seres perfeitos, assim como da tradição a eles atribuída, os Náthas que tiveram importância significativa na história do Tantra quando ouve o declínio do Budismo e o fim da era Gupta.

Conforme a tradição tântrica, os tantras shastras se dividem em três grupos de 64 tratados cada. Estes textos podem ser encontrados veiculados, em pequena proporção, em forma de livros, escritos geralmente em sânscrito com caracteres devanágari (alguns tantras foram posteriormente transcritos em caracteres latinos), ou, como acontece na maioria das vezes, ainda podem ser encontrados em sua perpetuação através da tradição da transmissão oral. Em uma taxionomia que tem toque um tanto quanto surrealista: o primeiro grupo conhecido são os tantras da região de Vishnukranta, que se estende desde os Montes Vindhya até Chattala (Chittagong), incluindo Bengala; o segundo grupo são os da região de Rathakranta, que vai de Vindhya até Mahacina (China), incluindo o Nepal; o terceiro grupo pertence à região de Asvakranta, que inicia em Vindhya e vai até o “grande oceano” (oceano Índico), incluindo toda a Índia. Estes tratados apresentam ensinamentos do tantrismo sob forma de um diálogo entre Shiva e Shakti.

As bases documentais do Tantra, denominadas ágamas (palavra sânscrita que significa origem, fonte de conhecimento, conhecimento adquirido, doutrina tradicional ou preceito), são uma coletânea de escrituras tão antigas quanto os vedas, expondo o conhecimento das tradições shaivas[13] e shaktas.[14] Diferentemente dos vedas, cuja composição seguiu a evolução do sânscrito, os ágamas foram originalmente escritos em quase todas as principais línguas da Índia antiga, i.e. nas sanscritóides e nas de origem dravidiana como o tamil, telugu, malayalam e etc.

Por serem as bases documentais das tradições shaktas e shaivas, os ágamas são considerados as escrituras fundamentais do tantrismo.[15] Seu conteúdo temático trata dos aspectos ontológicos da natureza do Ser e sua relação com o Todo, assim como a cosmologia e a ilusória realidade emergente pela cognição.

Estas escrituras desenvolvem um importante aspecto da doutrina tântrica ao abordarem os aspectos ritualísticos da tradição, descrevendo os rituais e seus elementos (upacára) tais como mantras, yantras e mudrás, além de outros importantes procedimentos esotéricos como fórmulas mágicas, encantamentos, a construção de imagens, altares e templos, assim como a descrição pormenorizada das práticas alquímicas relacionadas à vibração primeva (spandana), uma maneira de se sentir as energias da Deusa durante o ritual.

A maioria dos rituais descritos nos ágamas são praticados em templos, monastérios (mathas) e asharamas, e fora somente após o Séc. XVIII d.C. que seus principais textos foram parcialmente publicados, existindo até os dias atuais um bom números de ensinamentos que pertencem à tradição oral (mestre-discípulo) e outros que ainda se encontram na forma de manuscritos.

Os ágamas considerados tântricos e portanto denominados tantras, foram compostos entre os Sécs. V e IX d.C. Muitos destes textos foram transmitidos oralmente em um sampradáya ininterrupto de mestre a discípulo, e posteriormente transformados em manuscritos que somente foram editados após o Séc. XVIII d.C. Portanto, os ágamas servem de base documental para três grandes tradições da Índia, i.e. os vaishnavas,[16] shaivas e shaktas.

Os vaishnavágamas são as escrituras sagradas dos vaishnavas, a tradição que reverencia Vishnu como a face do Absoluto, guardião do dharma e da fé (shraddhá). Entre as escrituras vaishnavas de interesse para o tantrismo, as que se relacionam com a tradição Sahajiyá[17] são as mais importantes.

Os shaivágamas são as escrituras sagradas dos shaivas, a tradição que reverencia Shiva como o Absoluto. Existem 92 escrituras divididas em dois grandes grupos: o primeiro com 64 textos relacionados ao Shaivismo da Caxemira e o segundo com 28 textos relacionados à tradição Shaiva Siddhánta.[18] Neste último conjunto, dez escrituras são consideradas dualistas (dvaitas) e pertencentes à tradição Shivabheda.

Os shaktágamas são escrituras dos seguidores da face feminina do Absoluto, a Grande Deusa (Mahádeví). Portanto, qualquer escritura para ser considerada shakta deve abordar o Divino sob o aspecto feminino, na forma da onisciência dinâmica do Cosmos, o poder absoluto e supremo, denominado Ádi-Shakti Deví.

Praticamente todas as tradições tântricas são orientadas ao culto a feminilidade, presente na natureza e no Cosmos e, portanto, de conotação shakta, mesmo quando Shiva é a divindade central da tradição. Por isso suas escrituras são simplesmente denominadas tantras.[19]

O primeiro texto tântrico a ter uma transmissão por escrito, rompendo com a tradição unicamente oral, foi o Guhyasamája Tantra. Trata-se de um texto que teve sua origem nas escolas tântricas budistas e contêm as bases da doutrina tântrica, de forma que muitos textos posteriores não fariam outra coisa que precisar ou ampliar algum detalhe dos ensinamentos desta escritura. Para compreender o nascimento deste texto, que fora um marco no desenvolvimento do tantrismo, temos de buscar suas raízes dentro do Budismo.

Alguns princípios tântricos já estavam presentes nas práticas dos budistas na época de Buddha, que reconhecia os poderes sobrenaturais (siddhi), associados às práticas tântricas, e o método em quatro etapas para alcançá-los que ele denominou iddhipáda.

Embora seja pouco conhecido entre a maioria dos budistas, Buddha praticava uma forma de Yoga denominada Ásphánaka Yoga, com o objetivo de expandir as estruturas psíquicas para obtenção de poderes.

Essa foi uma das principais causas da grande ascensão do Budismo em seus primeiros anos. A outra foi à abertura de seu sádhana a todas as castas.

Diferentemente da sociedade brâmanica, em que o sannyása era uma etapa da vida somente acessível aos devotos brâmanes que passaram pelas fases anteriores, i.e. brahmáchárya (estudante), gárhasthya (chefe de família) e vanaprastha, no Budismo todas as castas tinham acesso direto à etapa monástica.

Entretanto, com o passar do tempo, o Budismo fora se tornando uma ordem mais rígida, pois Buddha possuía uma forte crença na necessidade da aplicação de regras morais e éticas a todos os monges, principalmente para aqueles que viviam nos monastérios. Entre as normas impostas havia a proibição da ingestão de carne, peixe e vinho durante as refeições e também qualquer relação ou contato com o sexo oposto.

Entretanto, a maioria dos monges não estava preparada para uma vida monástica regrada por uma disciplina tão rígida, pois não haviam sido educados para isso. Como resultado, muitos monges abandonaram a ordem por haverem transgredido os princípios impostos por Buddha. Outros permaneceram, embora continuassem violando as normas disciplinares em segredo. Assim surgiram conclaves secretos de monges que não aceitavam as proibições, praticando atos considerados abomináveis por aqueles que aceitavam a disciplina de Buddha.
Com a morte de Buddha, os grupos e conclaves de monges que praticavam as ‘coisas proibidas’ aumentou, espalhando-se por inúmeras províncias, formando uma organização denominada Guhyasamája, cujas práticas não eram aceitas pelo Budismo ortodoxo, e portanto exercidas em segredo (guhya).

Acrescentando-se a estas praticas proibidas o Yoga e a utilização de mantras, temos os ingredientes fundamentais do sádhana tântrico. Desta maneira, o Tantra se desenvolveu naturalmente entre os budistas dissidentes, pois as condições eram deveras favoráveis.

Os dissidentes, sentindo-se a parte do movimento budista convencional, e como os budistas em geral estavam fora do sistema de castas, não tinham acesso ao movimento brâmanico; sua única alternativa seria conseguir a legalização de suas práticas dentro do próprio corpo do Budismo. Assim, um texto que expunha sua doutrina fora redigido, compondo uma nova sangíti ou coleção de versos denominada Guhyasamája Tantra.

A data em que este manuscrito fora redigido é imprecisa. Alguns acreditam que tenha sido durante o período de vida do mestre budista Nágárjuna, e neste caso seria algo entre 150 e 300 d.C. Entretanto, outros estendem este período para 400 d.C., quase sete séculos após a morte de Buddha.

Uma das grandes inovações deste texto é a afirmação de que a emancipação do ser independe tanto do sofrimento do corpo quanto da abstinência dos prazeres do mundo. De fato, o texto afirma que a perfeição não pode ser obtida por um processo difícil que imponha sofrimento. Ele declara que a emancipação ou liberação somente seria acessível pela satisfação de todos os desejos como condição necessária para se obter o equilíbrio e a harmonia para o êxito do sádhana. Outro aspecto importante introduzido pela nova ordem fora o conceito de shakti, o feminino considerado como manifestação da energia divina. Assim, no primeiro capítulo há uma transfiguração de Buddha em cinco Dhyání Buddhas, cada um associado a uma shakti. Já no oitavo capítulo há uma menção do discípulo que é iniciado por uma mulher durante uma cerimônia denominada prajñábhiseka que literalmente significa iniciação ou consagração de um discípulo por uma prajñá, i.e. uma shakti.

O rito tem início quando o preceptor toma pela mão uma jovem que possui profundos conhecimentos sobre Yoga (i.e. uma yoginí) bonita e agradável para o discípulo que será iniciado. O discípulo a toma pelas mãos e o preceptor, colocando suas mãos sobre a cabeça do casal, afirma que o próprio Tathágata (i.e. o Buddha) está testemunhando o ato, e que este é o único caminho para iluminação.

A introdução de uma shakti em um ritual tântrico, que aparece pela primeira vez no Guhyasamája Tantra, é um importante marco na história do tantrismo. Até o presente, nenhuma referência confiável anterior ao Guhyasamája Tantra apresentou uma descrição da presença de uma shakti em rituais tântricos.

O Budismo tântrico está dividido em quatro classes, cada uma apropriada a um tipo de devoto, respectivamente: Caryá Tantra, Kriyá Tantra, Yoga Tantra e Anuttarayoga Tantra. As primeiras duas classes são preparatórias e não fazem uso da presença da shakti; as duas últimas são consideradas superiores e a shakti é um elemento importante no ritual.

Os cinco Dhyání Buddhas, i.e. Vairocana, Ratnasambhava, Amitábha, Amogasiddhi, e Aksobhya, são as divindades que presidem os cinco elementos (skandhas) que compõem o Universo na concepção budista, i.e. a forma (rúpa), os sentimentos (vedaná), as percepções (samjñá), as impressões (samskáras) e a consciência do Eu (vijñána). Os Dhyání Buddhas são considerados seres eternos que independem de qualquer outra categoria superior para sua manifestação. Ou seja, eles são os seres primevos da manifestação cósmica, cada um associado a sua shakti.

A descrição dessa reforma interna do Budismo, com a orientação do Guhyasamája Tantra, que liberou não somente a utilização da carne, mas qualquer tipo de carne, mesmo a humana, além de vinho em qualquer quantidade e etc., fora um exagero que se opunha a um dos grandes princípios do Budismo: o caminho do meio.

Por outro lado, o texto iria de encontro ao anseio popular ao dar direções para vários tipos de práticas mágicas, que vão desde a obtenção de sucesso na vida cotidiana, curas e vitória contra inimigos a elevação da consciência espiritual ao estado de Buddha através de feitiços e encantamentos (mantras), sinais místicos e gestos mágicos (mudrás) e desenhos que representavam o cosmos e as deusas (mandalas e yantras). Essa tradição foi aos poucos se consolidando como uma linha ritualística rica em práticas de Yoga, além de ritos de magia considerados cruéis, tais como: shánti, um rito para acalmar e perdoar; stambhana, um rito para paralisação do inimigo; vidvesana, um rito para separação; márana, um rito para assassinato e uccátana, um rito para destruição.

Esta tradição é conhecida atualmente pelo nome de Vajrayána ou Budismo tibetano. O termo vajra é utilizado como uma acepção para súnya (vazio), devido a sua indestrutibilidade.

Posteriormente, o Vajrayána foi imitado e muitos outros yánas foram surgindo como o Sahajayána, Kalacakrayána e o Mantrayána, quase todos com elementos comuns àqueles codificados pelo Guhyasamája Tantra.

A codificação literária dos tantras desenvolveu-se a partir do Guhyasamája Tantra, podendo-se encontrar textos recentes como o Yoni Tantra (Séc. XV), o Tantra Chintámani (Séc. XVI), o Vishavasára Tantra (Séc. XVII) e o Mahánirvána Tantra (Séc. XVIII), caracterizando-se, à medida que seu feitio se aproximou de nossa era, por serem cada vez mais didáticos.O conceito de literatura tântrica ultrapassa em muito o marco dos tantras propriamente ditos, incluindo também algumas das upanishads,[20] especialmente os que tratam das doutrinas Shakta e Kaula[21] como p.e. Deví Upanishad, Kula Upanishad, Tripúra Upanishad, Saraswati Rahasya Upanishad e etc., bem como os textos mitológicos purânicos[22] onde aparecem exaltações às manifestações do divino como princípio feminino. Há, portanto, um processo de expansão para outros textos da tradição hindu sob a égide do tantrismo.

O sânscrito utilizado na codificação literária dos tantras foi elaborado nos textos em uma estrutura conhecida como sandha-bhasha, i.e. intenção, propósito deliberado, ou sandhya-bhasha, i.e. crepuscular. Trata-se de um estilo de linguagem (bhasha) criada com o objetivo de tornar obscuras algumas realidades que poderiam, conforme os preceitos da tradição, serem profanadas se caíssem nas mãos de não iniciados. Como resultado, um não iniciado poderia ler um texto tântrico sem dar-se conta do caráter tântrico do mesmo. Exemplo poderia ser visto através do termo cakrapújá. No linguajar comum, cakra significa roda e pújá significa oferenda. Literalmente temos: oferenda a uma roda (da mesma forma que: Shivapújá, oferenda a Shiva; gurupújá, oferenda ao mestre e etc.). Devido ao cotidiano ritualístico animista indiano, poderíamos imaginar um rito de oferenda de flores, alimentos, cânticos e outros, a uma roda: roda para carro-de-boi, roda para utilização na irrigação ou moinho de tração animal, etc., construída para um importante fim e identificada à roda da vida (samsára). A palavra cakra também pode ser interpretada como um círculo, ou centro de energia. Representaria os centros sutis responsáveis pela captação, armazenamento e distribuição da energia vital (prána) no ser humano. O termo cakrapújá, poderia ser visto então como um momento no qual tecnicamente, através de exercícios respiratórios e mentalizações, seriam feitas intervenções nesses centros energéticos. Em outra interpretação, cakrapújá poderia significar um ritual iniciático tântrico, no qual a estrutura circular é adotada pelos participantes para a realização de práticas de caráter sensorial e sexual. Nestas práticas, os elementos das três formas de interpretação do termo cakrapújá são encontrados. São feitas oferendas de flores, frutos, perfumes e etc., assim como vocalizações de cânticos (mantras), prática de exercícios respiratórios (pránáyámas), mentalizações, energização dos cakras, imposição energética (pránaprathisthá) e técnicas sensoriais e sexuais unidas ao consumo das ‘cinco coisas boas’ – que para a maioria das pessoas (pashu) são consideradas as ‘cinco coisas proibidas’ (pañcatattva ou pañcamakára) – que são: vinho (madya), carne (mámsa), peixe (matsya), grãos tostados (mudrá) e o coito sacralizado (maithuna).

O sandhya-bhashya em sua estrutura, combina um primeiro sentido (profano) acessível a todos, e um segundo sentido reservado aos iniciados. Dessa forma a linguagem intencional seria também por si só uma fonte de conhecimento, um instrumento e objeto de meditação. As metáforas tântricas, além de serem destinadas a velar o significado aos não iniciados, são também manifestações vibracionais da tradição que elas incorporam. Sua linguagem é a representação de um microcosmo, o duplo verbal, a expressão sonora do Universo (macrocosmo) e do corpo. Para decifrar esta linguagem, não basta apenas ter as chaves do conhecimento tradicional tântrico, mas principalmente ter penetrado nos símbolos de forma viva, identificando-se aos próprios símbolos no rito tântrico.

Nós podemos dividir a história do Tantra em três fases distintas. A primeira anterior a 10 000 a.C., a segunda iniciada nas primeiras comunidades neolíticas, e a terceira surgida historicamente o período da guerra de Kurukshetra e o aparecimento do Budismo (1200 a 450 a.C.). Sobre a primeira fase nós só possuímos especulações, que poderiam ser associadas a expressões míticas reforçadas pela tradição. Todos os seus ensinamentos foram provavelmente transmitidos através de um simbolismo mítico – poético e numa linguagem iconográfica de raiz protoaustralóide. A segunda fase pode ser identificada através das expressões mágico-poéticas (xamânicas e míticas) e nos comportamentos sociais e interpessoais encontrados em alguns povos aborígines indianos de tradição matriarcal. Nessas comunidades constatamos diversas atividades rituais como fertilidade, regeneração, iniciação, passagem, cura e etc., nas quais o princípio feminino atua como norteador das crenças e ações práticas da vida cotidiana. Encontramos também elementos desta fase em uma forma mais elaborada social e culturalmente na civilização do Vale Indo. Desta fase o Tantra herdou um grande repertório mítico e simbólico encontrados na terceira fase, seja de tendência shakta, shaiva, vaishnava, ganaphata ou de qualquer outra linhagem ou escola existente. Esta terceira fase foi desenvolvida a partir do Séc. V d.C. nas comunidades situadas nas regiões fronteiriças do subcontinente indiano. Estas comunidades absorveram com mais intensidade certas características culturais e crenças ancestrais, expressas no simbolismo das deusas, nos mitos e ritos da imortalidade e libertação.

A partir do Séc. V d.C., como resultado do contexto histórico e cultural, distintas linhas de expressão tântrica foram formuladas. As de maior importância e que ainda influenciam profundamente o tantrismo contemporâneo são o Tantra Shakta, Shaiva, Vaishnava, Budista e Brâmanico (se é que podemos utilizar a expressão ‘Tantra Brâmanico’).[23] Todas essas linhas possuem os princípios epistemológicos e metafísicos do Tantra como base estrutural de suas doutrinas, mas diferenciam-se entre si em suas didáticas teóricas, tecnologia de auto-realização, ritualismo, ações comportamentais e, principalmente, na ênfase dada ao símbolo cultural e psicológico que representaria a Última Realidade a ser atingida.

A partir destas linhas outras variantes internas ou sub-linhas (ácáras) foram criadas visando suprir as necessidades sociais e locais de seus adeptos e ordenar suas características intelectuais, emocionais e espirituais. O Mahánirvána Tantra (IV: 36-7) descreve sete ácáras: 1. vedácára; 2. vaishnavácára; 3. shaivácára; 4. dakshinácára; 5. vámácára; 6. siddhántácára; e 7. kaulácára. Estas sete categorias são divididas, genericamente, em duas grandes categorias: dakshinácára e vámácára.[24] O Kaulamárgarahasya (XVIII: 22-5) enfatiza que todas as pessoas são seguidoras do dakshinácára por nascimento, mas somente pela devida iniciação que uma pessoa pode vir a se tornar um vámácárí.

Nós podemos considerar cada um destes ácáras como estágios na iniciação prescritos a três tipos de sádhakas. A tradição nos lega que os três primeiros estágios são para uma categoria ‘inferior’ de buscadores conhecida como pashu, i.e. pessoas cuja natureza animal e instintiva ainda é predominante. Os próximos dois estágios são para uma categoria superior conhecida como víra, i.e. pessoas que já dominaram sua natureza animal e instintiva. Os dois últimos estágios são para o divya, i.e. pessoas cujo elemento essencialmente divino é predominante.[25]

Os três primeiros acáras estão relacionados com três ramos distintos do Yoga, sendo eles Karma, Bhakti e Jñána Yoga. Assim, pelos rituais védicos pratica-se o Karma Yoga; pela senda vaishnava pratica-se a devoção (Bhakti Yoga); e pelo caminho shaiva adquire-se o estado de gnose (Jñána Yoga). O quarto ácára conserva os resultados adquiridos pelas práticas dos estágios anteriores. Os mestres desta tradição enfatizam que sua prática é linear e direta. Contudo, no próximo estágio, há uma mudança drástica na perspectiva espiritual, pois o termo vámá implica ‘retroversão’, ‘corrente retrógrada’ ou ‘reversão’, no sentido em que a alma se movimenta em direção a Realidade. Em outras palavras, o termo váma (esquerda) ou vámá (mulher) implica em um ‘retorno’ (nivrtti) espiritual, como distinto de pravrtti ou ‘seguindo a corrente’ natural dos sentidos. Neste estágio se inicia o aspecto mais esotérico, interno e secreto da prática tântrica, pois os objetos de atração, seja lá qual for sua natureza, são considerados como instrumentos, não a serem rejeitados, mas assimilados pelo próprio sádhaka na intenção de serem transcendidos pela consciência, deixando assim de serem aspectos externos de oposição ou obstáculos. Somente um víra (herói) tântrico é capaz de prosseguir nesta senda com total impunidade, e as técnicas de transcendência são apenas adquiridas através de um áchárya qualificado.

Os grandes obstáculos à perfeição espiritual são genericamente considerados como a saúde, o poder e o sexo. O Tantra harmoniza estes três obstáculos e para isso é necessária uma mente treinada para que o buscador não caia. O pashu, o víra e o divya correspondem à natureza animal, humana e espiritual, levando em consideração os aspectos grosseiros, sutis e divinos dos objetos que deverão ser confrontados como oposição a uma vida espiritual. Todo objeto possui uma forma grosseira, sutil e divina, e todo sádhaka tem de passar por cada um destes estágios. O Tantra insiste que nenhum estágio pode ser rejeitado em detrimento do outro, mas ao contrário, deve ser atravessado pacientemente, pois a natureza não dá saltos.

Na continuidade do processo expansivo do Tantra, os mestres da tradição, com sua mentalidade simbiótica, prática, assimilativa e criatividade perante as necessidades de ajustamento sócio cultural, foram desenvolvendo diferentes escolas (sampradáyas) para disseminar suas experiências e oferecer opções distintas aos seguidores.

Dentre o grande número de escolas, podemos citas algumas como proeminentes sampradáyas: Nátha, Siddha e Nátha-Siddha, Aghorí, Spanda, Krama, Kaula e Pratyabhijñá (escolas afiliadas as linhagens shaiva e shakta); Páshupáta, Kálámukha, Víra e Siddhánta (escolas afiliadas a linhagem shaiva); Sahajiyá (escola afiliada as linhagens Budista e vaishnava); Baul (escola afiliada as linhagens Budista, vaishnava e ao Sufismo); Kápálika (escola afiliada as linhagens Budista, shaiva e shakta); Shrí Vidyá (escola afiliada as linhagens vaishnava e shakta).

. I I I .
. A Difamação do Espírito Tântrico e a Ascensão das Gurujís .
AO SAIRMOS do contexto cultural indiano, transportando-nos ao contexto social e cultural ocidental, em busca de um definição ou conceituação do que poderia ser o Tantra ou o tantrismo, mostra-se como um provocação instigante devido ao grande distanciamento cultural e lingüístico, somado aos condicionamentos ideológicos de que estamos impregnados em relação à Índia. Iremos nos deparar, mesmo em meio aos representantes do setor acadêmico universitário e grupos de maior acesso à informação, com definições não muito simpáticas ao Tantra. Os textos tântricos são, não raras vezes, vistos como obras literárias, ou práticas, que tratam somente de sexo, em suas expressões mais libertinas, ou como manuais de magia popular de povos primitivos e culturalmente atrasados.

A preocupação em combater a noção puramente depreciativa do tantrismo e sua literatura no imaginário ocidental já vem sendo constatada desde o início do Séc. XIX em um restrito círculo de autores indianistas. Dentre esses podemos citar Sir John Woodroffe, conhecido pelo pseudônimo de Arthur Avalon, responsável por várias obras de estudos sobre o Tantra, especialmente o a tradição Kaula e o shaktismo.

Woodroffe no prefácio de seu The Principles of Tantra (1914) exemplifica a depreciação do tantrismo através de trechos de textos que recolheu de algumas obras:

O sistema hindu é pueril, impuro e sangrento de qualquer dos sistemas idolátricos estabelecidos na terra, entre um povo preguiçoso, afeminado, viciado, de imaginação desordenada, que freqüenta seus templos não em procura de devoção, mas da satisfação de seus apetites licenciosos [...]. O hinduísmo é o animalismo mais material e infantil que se há mascarado de idealismo. Não tem moralidade e o objeto absurdo de seu culto é uma mescla de Baco, Dom Juan e Dick Turpin. Não é uma religião, senão um poço de abominação, tão longe de Deus como possa conceber a mente do homem [...]. A muito colorida imaginação yogi empalidece junto às doutrinas dos infames Tantras, nos quais se produz um verdadeiro agregado de demônios, de variáveis formas, num enxame de seitas e a maioria dessas de influencia shaiva.

A característica depreciativa dos trechos apresentados pode ser entendida se levarmos em consideração as condições ideológicas de colonização e dominação política e econômica da Índia, a imaginária superioridade cultural do modelo social implantado na Índia Britânica, o forte padrão religioso cristão que acompanhava o processo colonizador, e as naturais dificuldades de assimilação dos conteúdos da tradição religiosa indiana, devido ao espesso véu simbólico que encobre todo o ritualismo e literatura desta milenar cultura.

Outro fator relevante na manutenção de uma imagem depreciativa dos Tantras, seja como literatura ou filosofia prática, pode ser encontrado junto a algumas escolas religiosas e filosóficas indianas que vêem na mensagem tântrica elementos que questionam e transgridem suas convicções e proscrições morais, sexuais e sociais. P.e., Shrí Gopalcharandas Shastri, membro da Swami Narayan Sect, no prefácio de seu livro The beginning of Vama Marga and the Shakta Cults cita que “estas tradições levaram à deterioração dos valores éticos e sociais; solaparam a moralidade do povo de tal forma que em geral todos se tornaram adeptos do vinho, da carne e do jogo. O adultério tornou-se algo comum”.

Muitas escolas filosóficas e religiosas indianas estruturam-se sob rígidas regras de comportamento social e sexual e, normalmente, seus seguidores mantém uma vida retirada das obrigações diárias do cotidiano social e familiar, além de um voto de vida celibatária. Em contraponto, os textos literários e práticas tântricas divulgam mensagens transgressoras, contrárias ao que é aceito na maioria das escolas indianas. O Yoni Tantra (II: 1-2) nos dá um exemplo:

A Deusa perguntou: Deus dos Deuses, Nátha (senhor) de todo o Cosmos, Causa da criação, manutenção e dissolução do Todo, sem Tu não há pai, como sem Mim não há mãe. Você explicou a maior forma de adoração da yoni (vagina) por meio do estímulo sexual. Diga-me, agora, qual a yoni que deve ser adorada e quais são auspiciosas?
Então, Mahádeva respondeu: As atrizes, as Kápálikas, as prostitutas (devadásis), as lavadeiras, as filhas do barbeiro, as brâmanís, as filhas dos shúdras, as floristas e pastoras. Estas são as nove renomadas donzelas, entretanto, pode ser qualquer donzela, se for esperta e tiver olhar brincalhão. O devoto deve adorar a yoni de sua mãe e copular com todas as yonis, com qualquer mulher entre 12 e 60 anos.

Não podemos também deixar de citar que a cultura moderna oficial indiana, moldada pela elite urbana ortodoxa, foi profundamente influenciada pelos valores morais do puritanismo cristão dos primeiros missionários e administradores da Índia britânica; além do que ainda permanece nessa cultura elementos patriarcais moralistas oriundos dos setecentos anos de dominação muçulmana em grande parte da Índia. Esse hinduísmo urbano oficial é hostil aos valores sensoriais encontrados nas culturas aborígines tribais indianas e no tantrismo, sendo que seu puritanismo tem procurado transformar essas expressões naturais humanas em símbolos do amor espiritual, assexuado e divino.

Para o tantrismo, a sexualidade, ao invés de ser um obstáculo é um instrumento para o desenvolvimento espiritual, e a vida é para ser vivida e celebrada em todas as suas expressões, das obrigações sociais e familiares às mais íntimas necessidades.

O tantrismo, na sua trajetória histórica, gerou comportamentos que transgrediram profundamente as normas que regulam a estrutura sócio religiosa patriarcal indiana. Do Séc. XII d.C., período de efervescência dos textos tântricos, até nossos dias, o contexto cultural indiano tem visto o surgimento de várias mulheres, consideradas elevadas mestras filosóficas e religiosas, que influenciam com suas idéias milhares de pessoas. Dentre essas memoráveis mulheres, podemos citar Akka Mahádeví, membro do movimento Várashaivismo que comoveu o sul da Índia no Séc. XII d.C. Os vírashaivas são transgressores sociais que rejeitavam o sistema de castas, o ritualismo ortodoxo sacerdotal brâmane e o sistema patriarcal. O folclore popular apresenta Akka Mahádeví como a primeira mulher a andar nua pelas estradas indianas, seguindo a tradição dos sadhus (renunciantes masculinos), acompanhada por seus devotos e pregando seus ensinamentos. No Séc. XIV d.C., Lalleshvarí, outra lendária mulher, teve grande papel no Shaivismo da Caxemira. Ela, cansada do papel de esposa ideal e submissa, fugiu para a casa de um mestre tântrico e aprimorou sua vida espiritual, obtendo altos estados de consciência que a habilitaram a confrontar-se filosoficamente com os representantes da tradição sacerdotal brâmane e a transmitir muitos ensinamentos. Da mesma forma que Akka Mahádeví, Lalleshvarí viajou pela Índia segundo as características dos sadhus tântricos, livre como os ventos e vestida de céu (nua), tendo muitos discípulos e obtendo grande reconhecimento. Os nomes e histórias de muitas outras mulheres do passado indiano poderiam ser citados aqui, como também o nome de dezenas outras mulheres que hoje contribuem no contexto indiano e mundial para uma mudança de paradigmas e formas sócio culturais patriarcais de se relacionar com o outro feminino, mulher. Recentemente, Shrí Ma Ishvarí, uma iniciadora da tradição Kulaprakriyá, viajou o mundo iniciando inúmeros adeptos na tradição oriunda do grande mestre e sábio Abhinavgupta, sempre vestida, em seus encontros, apenas do céu.

Podemos encontrar, na tradição tântrica, elementos que hoje representam bandeiras na luta pelo desenvolvimento das liberdades pessoais, de escolha de uso do corpo e da sexualidade, como a prática sexual desvinculada de tabus religiosos, de restrições morais ao prazer, do objetivo da reprodução e do romantismo. Encontramos também, narrativas míticas que em seus símbolos, tramas, poética e filosofia expressam vozes do feminismo.

Conforme exemplos abaixo, encontramos na literatura tântrica muitas vozes se expressando em favor da valorização do papel sociocultural feminino e em defesa da mulher:

A mulher cria o universo, ela é o próprio corpo deste universo.
A mulher é suporte de todos os três mundos, é a essência de nosso corpo.
Não existe outra felicidade a não ser a que a mulher procura.
Não existe outro caminho a não ser o que a mulher pode abrir-nos.
Jamais houve e jamais haverá, nem ontem, nem hoje e nem amanhã, outra fortuna que a mulher, nem outro reino, nem peregrinação, nem yoga, nem oração, nem fórmula mágica, nem sacrifício, nem outra plenitude, que as outorgadas pela mulher.
[26]

Uma mulher é uma deusa. Cultue uma mulher ou uma rapariga como ela sendo Shakti, protegida pelos Kaulas. Nunca alguém deveria levantar a voz contra raparigas ou mulheres.
[27]

Na tradição Kaula, toda mulher é considerada como manifestação da Deusa. Nenhum homem poderia levantar suas mãos, bater ou ameaçar uma mulher. Quando ela está nua, o homem deveria ajoelhar-se e cultuá-la como deusa. Ela tem iguais direitos que o homem em todos os níveis.

Apesar de deparar-nos constantemente dentro da literatura tântrica com a transgressão e apresentação de novos valores, o tantrismo ainda não teve a força necessária para influenciar significativamente no comportamento social indiano, como fez no universo filosófico e prático religioso.

Os ecos do patriarcalismo podem facilmente serem vistos bem acomodados nos textos. Exemplo temos em relação ao status feminino. Por um lado, em algumas práticas ela não passa de mais um objeto do rito. A valorização da mulher não consegue cruzar a fronteira do rito para o convívio social. O corpo literário tântrico é ainda em sua grande maioria uma escritura masculina, feita por homens e para ser utilizada por homens.

Mesmo assim, postulamos que a identificação e apresentação dessas vozes expressas pela literatura tântrica, somadas a uma leitura crítica desconstrutiva, poderiam auxiliar em nosso debate cultural como elementos para reflexão e contribuição na formação de novos paradigmas e resolução de conflitos pessoais e sociais, causados pela forma com que nossa sociedade contemporânea lida ainda com o gênero.

Om Mahá Kálí Sváháh!
Fernando Liguori
Anuttara Kápilanáth Kuláchárya
Notas:
[1] Kámáshastras são as escrituras voltadas para o prazer sexual como p.e. o Kámá-Sútra de Vatsayana e o Ananga Ranga de Kalyana Malla.
[2] Esses aborígines influenciaram profundamente toda sociedade, étnica e linguisticamente, e muitas metafísicas posteriores derivam de sua visão vegetalista de encarar o mundo.
[3] Ciclos de renascimentos e mortes do universo, o eterno retorno – idades Cósmicas.
[4] Dever, ação e libertação.
[5] A tradição vámácára se caracteriza por um ritual que envolve o conúbio sexual entre o princípio feminino e masculino – os pólos da Consciência Cósmica – culminando em uma cerimônia de união (maithuna-yoga) entre os participantes do ritual. Portanto, essa tradição também é conhecida por empregar o latasádhana (i.e. ritual com mulher). O sádhaka representa Shiva como à consciência estática (caitanya), e a sádhiká representa Ádi-Shakti como a consciência dinâmica (cidrúpini). A cópula é uma forma de se celebrar a feminilidade doadora da vida, vivenciando-se a unicidade no espaço de consciência de vigília por meio da geração alquímica das vibrações sutis do processo de criação, revivendo assim a cosmogênese. Esta tradição fora denominada como ‘mão esquerda’ pois o termo vámá tanto significa ‘mulher’ quanto váma significa ‘esquerda’, uma clara referencia a posição da mulher a esquerda do homem na hora do ritual.
[6] Veja a introdução de meu artigo A Deusa & o Trovão.
[7] Krishna é o Deus, por Swami Bháktiankar, p. 55.
[8] Idem, p. 62.
[9] O culto Rádhá-Krishna desenvolveu-se de maneira importante no sul da Índia, principalmente na região Tamil onde havia a escola filosófica dos ácháryas. O principal filósofo desta escola fora o sábio Nathámuni, que viveu entre os Sécs. X e XI d.C. Este mestre, que também fora um grande teólogo, popularizou o culto vaishnava adaptando e introduzindo canções que contavam a vida dos homens santos conhecidos como álvárs. Estas canções eram acompanhadas por conjuntos que tocavam músicas devocionais de características dravidianas e eram cantadas nas aldeias, nos monastérios e nos templos.
[10] Ver √tan em Dicionário Monier Williams, p. 435.
[11] Conforme Kashika Vritti, citado por Surendranáth Dasgupta.
[12] Veja meu artigo Em Busca das Raízes Tântricas do Hatha Yoga, primeira parte.
[13] As tradições denominadas shaivas são constituídas por religiões, cultos e seitas que reverenciam o Absoluto sob o aspecto do Deus Shiva.
[14] As tradições denominadas shaktas são constituídas por religiões, cultos e seitas que reverenciam a visão feminina do Absoluto em suas múltiplas manifestações e formas.
[15] Tradições tântricas são constituídas por um grande conjunto de tradições localizadas principalmente na intercessão das tradições shaivas e shaktas, embora haja também tradições tântricas de origem vaishnava.
[16] As tradições denominadas vaishnavas são constituídas por religiões, cultos e seitas que reverenciam o Absoluto sob o aspecto do Deus Vishnu, principalmente em suas manifestações como um avatára.
[17] Tradição tântrica que floresceu nos estados de Bengala, Assam e Orissa por volta dos Sécs. VIII e IX d.C., dentro do movimento reformista que seguiu a decadência do Budismo, englobando grupos budistas e brâmanes dissidentes de suas origens. A tradição Sahajiyá divide-se em duas linhas: uma de origem brâmane (hindu) e outra de origem budista. A tradição brâmane é de linhagem vaishnava, e pelo conteúdo de seus rituais é considerada radical até pelos seus aderentes mais ortodoxos. Nesta linha, os Sahajiyás consideram que todo homem e toda mulher têm dois aspectos, um interno e outro externo. O externo é o corpo, templo vivo do aspecto interno, que no homem é representado por Krishna e na mulher por Rádhá. Assim, pela união sexual, os devotos celebram a união interior de Rádhá e Krishna, como uma forma de se atingir a unicidade pela elevação do Ser a um altíssimo estado vibracional de harmonia, felicidade e prazer. Portanto, a união entre o homem e a mulher como uma forma de sacralização da natureza humana é o princípio fundamental da doutrina dos Sahajiyás.
[18] O shaivismo diversificou-se em vários grupos e escolas cuja classificação segue um complexo conjunto: 1. A tradição baseada nos puránas é conhecida como Siddhánta – que não deve ser confundida com Shaiva Siddhánta – de origem dvaita (dualista) que se desenvolveu na região da Caxemira ao norte da Índia; 2. as tradições baseadas nos shaivágamas que são três: a primeira denomina-se Shaivismo Tamil que se desenvolveu no sul da Índia entre os Sécs. XI e XIII d.C. e que comportou as tradições Shaiva Siddhánta, Siddhas e Nátha-Siddhas. A segunda denominada Vírashaivismo foi iniciada pelo sábio Basava no Séc. XII d.C. e comporta a tradição dos Lingáyats. A terceira é conhecida atualmente pela designação genérica de Shaivismo da Caxemira que engloba as tradições Kaula, Trika, Krama, Spanda e Pratyabhijñá; 3. a tradição dos Pashupátas que tem seu início atribuído a Lakulísha ou Nakulísha, autor do Pashupáta-Sútra. Esta tradição fora marcada por um intenso ascetismo imposto aos seus praticantes como uma forma de se alcançar o objetivo supremo da auto-realização por meio da identificação entre o devoto e Shiva (Rudrasáyujiya). Neste grupo estão inseridas as tradições dos Kápálikas e dos Kálámukhas.
[19] Entretanto, o shaktismo é constituído por uma ampla gama de tradições, muitas das quais não são tântricas, e por isso sua literatura extrapola o universo tântrico, estando distribuída entre as upanishads, os puránas, os upapuránas e outros ágamas.
[20] As upanishads – termo que se traduz como sentar-se junto, ou, ensinamentos transmitidos na intimidade – são textos que fazem comentários aos Vedas – os principais e primeiros livros do hinduísmo, sendo eles o Rigveda, Sámaveda, Yajurveda e Atharvaveda –, discutindo filosoficamente a identidade entre o Ser Universal e o Ser Individual (Brahman e Átman). Eles foram elaborados a partir de 800 a.C. e seu conjunto de ensinamentos é conhecido como Vedánta, isto é, o final dos Vedas (termo literalmente traduzido como conhecimento). Existem dezenas de upanishads. Dez são tidos como principais: Isha Upanishad, Kena Upanishad, Katha Upanishad, Prásna Upanishad, Mundaka Upanishad, Mandukya Upanishad, Taittirya Upanishad, Chandogya Upanishad, Brihadaranyaka Upanishad, Shwetaswatara Upanishad e Kaula Upanishad.
[21] Doutrinas que têm como ponto principal a exaltação do princípio feminino como a Grande Deusa Universal.
[22] Os puránas são livros para a educação popular. Através de mitos, eles exemplificam os ensinamentos dos Vedas. Foram compostos a partir do início de nossa era, até o século X d.C. Nos puránas são encontradas as características de alguma divindade, detalhes sobre a criação do mundo, genealogia dos deuses, dinastias reais, especulações religiosas e filosóficas e etc. Existem dezenas de puránas, mas dezoito são tidos como os principais. Eles podem ser classificados como os dedicados a Brahman, o Deus criador (Brahma Purána, Brahmánanda Purána, Brahmavaivarta Purána, Markadeya Purána, Bhavishya Purána, Vamána Purána); os dedicados a Vishnu, o Deus preservador (Vishnu Purána, Padma Purána, Bhagavata Purána, Naradiya Purána, Garuda Purána, Varatha Purána); os dedicados a Shiva, o Deus destruidor (Shiva Purána, Skanda Purána, Ágni Purána, Matsya Purána, Kurma Purána, Linga Purána, Vayú Purána).
[23] Veja O vámácára e sua posição anti-brâmanica em Tantra Vidyá, segunda parte.
[24] Veja meu artigo Em Busca das Raízes Tântricas do Hatha Yoga, primeira parte.
[25] Idem.
[26] Shaktiságama Tantra, II: 52-5.
[27] Kaulajñánanirnaya, patala 23.

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