segunda-feira, 3 de novembro de 2008

O Tantra Hindu Tradicional


Por Fernando Liguori


[Nota sobre a A.'.A.'.– Anuttara Āmnāya,[1] grupo de estudos tântricos do Espaço Kaula: o escrito que se segue faz parte do material de estudos da A.'.A.'.. Como o grupo é formado por pessoas que não possuem um conhecimento mais profundo acerca do Tantra, procuramos fornecer instruções simples e de fácil assimilação para que todos possam acompanhar a evolução do estudo e um maior aprofundamento no futuro.]

Apresentação

O Tantra se tornou um dos mais conhecidos e populares aspectos da espiritualidade Oriental no mundo de hoje. Em detrimento desta popularização, um moderno conjunto de movimentos neotântricos surgiu no Ocidente, assim como na Índia também. O Tantra parece dispor ou proporcionar a liberdade e a universalidade que a mente moderna está procurando, com sua forma criativa, diversa e estimulante, portanto, um vasto mecanismo capaz de agregar um enorme potencial de audiência. Contudo, o Tantra permanece como um dos sistemas menos compreendidos de ensinamentos yogī-s. O aspecto espiritual e meditativo do Tantra não foi bem explicado em detalhes ou profundamente, particularmente do ponto de vista da tradição Hindu, aonde, quem sabe, haja grande diversidade de ensinamentos tântricos existentes. Portanto, é necessário que nós coloquemos esta tradição sob um novo prisma, identificando-a como um importante aspecto da tradição yogī.

Na Índia, o nome tantrismo se tornou sinônimo para hedonismo deliberado em tempos antigos. Este preconceito perdura até hoje em alguns círculos bramânicos bem influentes. Infelizmente, este aspecto sexual e mal compreendo do Tantra foi o mais explorado no Ocidente. Alguns estudantes acreditam com veemência que o Tantra pode ser aprendido em livros, se lançando a prática de exercícios tântricos muitas vezes desconectados com o arranjo em que deveriam estar sendo praticados, sob a tutela de um ācārya (professor, preceptor, guru). O Tantra é uma tradição iniciática, baseada no relacionamento entre guru e discípulo e principalmente no merecimento. Nenhuma escritura pode proporcionar a vívida experiência tão necessária no Tantra. É o guru quem infunde vida as escrituras. É somente o guru capaz de assistir o aspirante em seu despertar e subseqüente progresso espiritual. Portanto, um dos objetivos principais deste grupo de estudos é apresentar a tradição tântrica sob seu aspecto devocional, meditativo e aliado a práticas yogī-s. Ademais, é um de nossos objetivos corrigir estes erros de interpretação acerca da tradição.

Tantrismo é um poderoso caminho espiritual, e como qualquer coisa poderosa, ele possui seus perigos. Sem a devida instrução, responsabilidade e bom-senso, o praticante tântrico pode sucumbir à exaltação do ego e utilizar mal as habilidades que porventura tenha conquistado.

Não é de se negar que alguns aspirantes ocidentais se encontram preparados para o discipulado tradicional. De acordo com um velho adágio, o mestre aparece quando o pupilo está preparado. Portanto, qualquer um que queira se lançar no estudo e na prática do tantrismo deve obter primeiro as fundações intelectuais e morais necessárias para disciplina tântrica.

Finalmente, o Tantra pode, quem sabe, ser melhor definido como uma aproximação energética ao caminho espiritual que se vale de várias técnicas como mantra, prāṇāyāma, meditação e rituais. Ele contém um profundo aspecto devocional que enfatiza a adoração da Deusa em todas as suas formas e do Senhor Śiva, também em suas inúmeras manifestações. Ele contém o caminho do conhecimento, dirigindo-nos a auto-realização e a realização do Absoluto. Como tal, ele é um sistema complexo e integral para o desenvolvimento da consciência para todos aqueles que de alguma maneira buscam a verdade, a Realidade Última que se encontra em cada um de nós.

Nos nossos primeiros encontros vamos examinar o pano de fundo tântrico relacionado à nossa cultura moderna, principalmente no que concerne ao Ocidente e a visão tradicional do Tantra Hindu. Vamos estudar também os diferentes níveis de ensinamentos tântricos relativos à tradição conforme praticada na Índia. O propósito destes estudos preliminares é criar uma base para o entendimento do Tantra em todo seu escopo.

O Tantra Hindu Tradicional

O Tantra Hindu é um complexo sistema de conhecimento espiritual, uma parte integral da espiritualidade Hindu e das tradições que floresceram na região dos Himalaias. Porém, o Hinduísmo não é uma religião no sentido em que nós, os ocidentais, compreendemos este termo, i.e. um sistema de crença orientada cuja ênfase se encontra em uma escritura, profeta ou igreja. O Hinduísmo não é um sistema de crença exclusiva que prega a descrença em outras religiões, alegando serem elas falsas; mas ao contrário, o Hinduísmo é uma tradição espiritual aberta que aceita todos os tipos de práticas e insights, sempre encorajando a diversidade, inovação e liberdade individual. O nome correto dado ao Hinduísmo é Sanātana Dharma que significa Religião Eterna ou Dever Eterno, se referindo não aos ensinamentos baseados em um salvador particular, escritura ou revelação histórica, mas um sempre vivo desdobramento de uma verdade eterna relativa a constante mudança das condições humanas.

A palavra Hinduísmo é um anglicismo que surgiu por volta de 1830 e cuja origem não é bem conhecida, embora sejam aceitas pelo menos duas versões epistemológicas plausíveis. A primeira diz que a palavra hinduísmo seria uma referência às terras entre as cordilheiras do Himalaia e o Cabo Bindu Sarovara, atual Cabo Carmorim. Assim a palavra hinduísmo seria formada pelas sílabas hi (Himalaia) + ndu (Bindu), que posteriormente fora transformada para Hindusthan. Portanto, a religião dos habitantes do subcontinente indiano passou a ser designada Hinduísmo. A segunda diz que o termo hinduísmo seria derivado da palavra sindhu, designação persa para o rio Indo, que por modificação vocálica passou a ser pronunciada hindu, a religião dos povos ribeirinhos a ser designada Hinduísmo. Portanto, Hinduísmo não define uma religião única, sendo somente uma designação genérica de cobertura para um grande número de religiões que cultuam diferentes faces do Absoluto, com diversas formas de ritual e percepções da verdade.

Na Índia, segundo o idioma védico, os europeus são chamados de mlechas ou yavanas. De modo similar, hindu sempre foi o nome dado aos indianos infiéis pelos muçulmanos e mais tarde aos indianos gentios pelos missionários cristãos e colonizadores europeus. A Índia originalmente era denominada Bharata-Varṣa, i.e. terra dos descendentes de Bharata ou Ārya-Varṣa, terra dos arianos, e sua religião original sempre foi denominada Sanātana Dharma ou Vaidika Dharma, i.e. Religião dos Vedas.

Esse dharma[2] não se trata meramente de um corpo de crenças cegas, completamente desconectadas com o dia-a-dia da humanidade, mas sim um conjunto de princípios que visam uma vida saudável e benéfica espiritual e materialmente. Portanto, quem conhece bem estes princípios e atua segundo eles é um verdadeiro āryan (ser humano progressista – seguidor do Vaidika Dharma), que segue o caminho seguro da felicidade tanto individual quanto coletiva, do progresso tanto material quanto espiritual. Vaidika significa que se relaciona com os Vedas ou conhecimento perfeito. Conseqüentemente, a religião do conhecimento perfeito.

O Tantra Hindu, como a tradição Hindu em si, contém muitos ensinamentos, muitos deles variantes, alternativos ou aparentemente contraditórios. O que pode ser dito para caracterizar a tradição pode somente ser verdade para um aspecto dela. Portanto, para verdadeiramente a compreendermos necessitamos examinar seus ensinamentos como um todo. A tradição Hindu possui uma grande variedade de ensinamentos que inclui diferentes técnicas para vários tipos de temperamentos e diferentes níveis de buscadores. Há também muitos professores diferentes, nomes e formas do Divino, assim como inúmeros caminhos da tradição yogī a serem escolhidos. Conseqüentemente temos de tormar cuidado ao fazer conclusões preceptadas acerca das tradições. A tradição pode ser comparada ao lendário elefante e nós os homens cegos que, tocando cada parte de seu gigantesco corpo com as mãos, julgamos sua forma como um todo. Portanto, ensinamentos aparentemente contraditórios, na verdade, são partes de um mesmo sistema profundo de conhecimento.

A tradição Hindu tem sido muitas vezes criticada como sendo informal, impessoal e sobrenatural, considerando o mundo uma ilusão (māyā) e o Absoluto como a verdadeira realidade. Por outro lado, esta tradição também tem sido criticada por reconhecer toda forma concebível e expressão pessoal do Divino. O Hinduísmo não apenas possui a idéia de um Brahman imutável e sem forma, mas também a imagem do bebê Kṛṣṇa, a forma erótica da Deusa, Hanuman com sua forma de macaco e Gaṇeśa com a cabeça de elefante. O Hinduísmo não é apenas a mais ascética e sobrenatural das religiões com seus yogī-s e renunciantes das florestas, é também a filosofia que mais afirma a vida, cheia de histórias de amor, casamento e vida familiar, como as histórias de Rama e Kṛṣṇa. Não existe contradição entre estes dois lados, pois o Hinduísmo enfatiza a transcendência da vida através de seu próprio entendimento, não através de sua negação ou supressão.

Portanto, Hinduísmo não define uma religião única, sendo somente uma designação genérica de cobertura para um grande número de religiões que cultuam diferentes faces do Absoluto, com diversas formas de ritual e percepções da verdade.

Entre várias tradições, seitas e religiões que se abrigam sob a designação genérica de Hinduísmo, podemos ensaiar uma classificação populacional com base no agrupamento das diversas formas de fé, conforme a divindade cultuada e visualizada como deidade principal:

1. As tradições denominadas vaiṣṇavas que correspondem a 70% da população e são constituídas por religiões, cultos e seitas que reverenciam o Absoluto sob o aspecto do Deus Viṣṇu, principalmente em suas manifestações como um avatára.
2. As tradições denominadas śaivas que correspondem a 25% da população e são constituídas por religiões, cultos e seitas que reverenciam o Absoluto sob o aspecto do Deus Śiva.
3. As tradições denominadas śāktas que correspondem a 2% da população e são constituídas por religiões, cultos e seitas que reverenciam a visão feminina do Absoluto em suas múltiplas manifestações e formas.
4. Tradições tântricas que correspondem a 1% da população e são constituídas por um grande conjunto de tradições localizadas principalmente na intercessão das tradições śaivas e śāktas, embora haja também tradições tântricas de origem vaiṣṇava.
5. Os 2% das tradições restantes são formados por grupos minoritários, entre os quais nem são considerados hindus na acepção da palavra, como é o caso do Budismo, do Sikhismo e do Jainismo.

Notas

[1] A A.'.A.'. (Anuttara Āmnāya ou Utarāmnāya), de acordo com a doutrina tradicional, provê os ensinamentos da boca (ou face) de Śiva voltada para o norte, i.e. os ensinamentos vāmamārga, pois o norte é a fece esquerda. Nas escrituras, este nome está vinculado a Tradição Krama, que emprega a dūtīyāga, uma prática espiritual que emprega vinho, carne e o conúbio sexual como ferramentas de adoração a Deusa.
[2] Dhāraṇād dharma ity āhur dharmo dhārayati prajāḥ (o que suporta, o que mantêm as pessoas unidas, é o dharma). Mahābhārata, Karṇa-parva, 69.59.

Referências

BHATTACHARYA, B. The World of Tantra. Nova Délhi: Munshiran Manoharlal, 1988.
FRAWLEY, David. Inner Tantric Yoga – Working With the Universal Shakti: Secrets of Mantras, Deities and Meditation. Motilal Banarsidass. Nova Déli, 2009.
__________. Tantric Yoga and the Wisdom Goddesses – Spiritual Secrets of Ayurveda. Motilal Banarsidass. Nova Déli, 2002.
LIGUORI, Fernando. O vāmācāra & sua conduta anti-bramânica. Ensaio publicado em: Os Caminhos do Yoga, vol. XI, n. 7, 2008. Publicação periódica do Centro Védico Ānanda Chandra.
SATI, Tarananda. Tantra Kaula: A Arte do Ritual e da Magia. São Paulo: Madras, 2006.

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