domingo, 2 de novembro de 2008

Paścimāmnāya – o Culto a Kubjikā


Por Fernando Liguori

[Nota: este escrito tem o objetivo de esclarecer algumas questões levantadas pelos estudantes do grupo de estudos tântricos realizado no Espaço Kaula acerca do culto de Kubjikā. Como o interesse neste secreto culto Kaula tem crescido, eu vi a necessidade de se produzir um material mais elaborado que em breve será publicado sob o nome de O Culto da Deusa Kubjikā – o Secreto Culto da Deusa Kaula de Newar.]

Sobre as origens do Culto a Kubjikā

ALGUNS eruditos têm enfatizado que o culto de Kubjikā é de origem nepaleza pois os manuscritos tântricos desta escola estão preservados nesta língua. Mas esta suposição não é, contudo, suportada por estes mesmos textos nepalezes. Eles afirmam que esta escola se orininou nas regiões montanhosas, provavelmente os Himalais, estendenso-se posteriormente por toda Índia. De qualquer maneira, o Nepal é vastamente mencionado como um lugar sagrado a deusa, e enquanto é dito que os Nove Nāthas propagaram a doutrina de Kubjikā em tempos recentes, nem todo norte da Índia é de origem nepaleza. Contudo, seja lá onde ele tenha se originado, o culto de Kubjikā apareceu no Nepal na primeira metade do Séc. XII d.C., a data do mais antigo manuscrido do Kubjikāmatatantra. A grande abundância de manuscritos tântricos e trabalhos relacionados a esta escola, copiados desde essa época até o Séc. XVII d.C., testifica sua popularidade durante esse período. A julgar pelo número de manuscritos copiados a partir deste período, o culto a Kubjikā parece ter desvanecido, embora ele tenha sido perpetuado por um grupo pequeno de iniciados até o presente momento, e alguns manuscritos ainda continuam a serem copiados. Kubjikā ainda continua a ser adorada em certas ocasiões no Vale Kathmandu, embora seu culto seja pouco conhecido até mesmo naquela região.[1]

Estes mesmos eruditos apontam que referências a Kubjikā e sua escola são raras, e mesmo imagens ou esculturas quase nunca estão disponíveis aos pesquisadores. Isso é verdade e se aplica também a outra deusa associada a sua adoração e cujo culto foi muito popular no Nepal desde os primórdios do culto de Kubjikā. Eu me refiro a Guhyakālī. A razão desta indisponibilidade de elementos culturais e religiosos parece ser que tais cultos ou desapareceram com inúmeros outros ou foram absorvidos naqueles que sobreviveram apenas nas províncias rurais ou em níveis regionais. Um exemplo deste fenômeno é o próprio Śaivismo Trika que, se não fosse pelo zelo de seus seguidores na Caxemira e pela genialidade daqueles que se dedicaram ao sistema, provavelmente seria desconhecido. Não está completamente correto, portanto, pensar no culto de Kubjikā como uma escola que permanece independente e se mantém distante de outras escolas tântricas. De fato, um dos futuros objetivos das pesquisas acerca desta escola será identificar, na medida em que as fontes disponíveis permitirem, os vários elementos de outras tradições tântricas que contribuiram para sua fundação e distingui-los de sua fonte original.

Kubjikā como a Deusa Curvada

Como indiquei em outro escrito,[2] Kubjikā é descrita no Paścimajyeṣṭhāmnāyakarmārcanapaddhati (II: 33-50) como a deusa arqueada ou curvada (kubjārūpā). O nome Kubjikā é a forma feminina da palavra sânscrita kubja, que literalmente significa corcunda ou curvo, torto e arqueado. Ainda assim, embora os Tantras da escola Kubjikā descrevam muitas formas na qual a deusa pode ser visualizada, ela não é comumente representada na forma curvada. Eu sugeri, a fim de esclarecer este fato, que Kubjā é uma palavra de origem muṇḍā que originalmente não significa torto, arqueado ou curvado. Os Tantras não apoiam, portanto, esta alegação. Assim, em minhas pesquisas descobri que Kubjikā é muitas vezes chamada de Vakreśvarī, Vakrikā ou Vakrā pois, como explicam os Tantras, suas pernas são tortas (vakra). De suas três formas como uma donzela (Bālā), jovem mulher (Kumārī) e mulher envelhecida (Vṛddhā), é esta última, como é de se esperar, que está associada com a forma arqueada, curvada. Talvez essa imagem da deusa como uma mulher velha e deformada seja a razão pela qual ela também seja conhecida como Khañjani, que significa literalmente aquela que anda com um coxo. Um mito descrito no Kularatnoddyota (I: 16-24) que explica porque ela é curva não relaciona, contudo, sua idade. A história diz que Kubjikā uma vez sentou com devoção para adorar a união do deus com a deusa. O deus então apareceu a ela e pegou sua mão como prelúdio a união, mas ela, dominada por apreensão e pudor, contraiu seu corpo e se tornou Kubjikā. Como tal, ela é equiparada com a kuṇḍalinī que, quando desperta, torna-se curvada de vergonha. Novamente, a forma curvada de Kubjikā diz respeito à sua natureza como kuṇḍalinī que é a matriz (yoni) ou triângulo (sṛgāta) de onde a criação derrama e na qual reside. Como tal, ela é curvada, não quando desperta, mas quando se encontra em seu estado latente, quando o poder da consciência (cicchakti) está contraído, o que é de se esperar nas representações da kuṇḍalinī. Neste ponto de vista, a consciência é contínua, i.e. não condicionada quando está livre do estado de constrição cognitiva gerado pelo estado arqueado ou curvado. De outro ponto de vista, é dito que Kubjikā se encontra curvada porque ela contrai suas pernas para residir no corpo de Kuleśvara, assim como alguém que possui o corpo grande deve se inclinar para entrar em uma pequena choupana. De acordo com o Parātantra (XV: 16a ff), ela é curvada porque inicialmente agita seu umbigo com sua língua para dar nascimento ao universo a partir de seu ventre. Isso ocorre, como o Ciñcinīmatasārasamuccaya (III: 11) explica, porque o umbigo é a Grande Matriz (mahāyoni) de onde a kuṇḍalinī se ergue. Portanto, de acordo com este relato, Kubjikā é curvada para que possa estimular seu poder cósmico que, ascendendo através do corpo, leva o yogī a liberação.

Kubjikā é a Deusa Suprema (Parā devī) onde a forma é a divina luz da consciência que brilha no centro de radiância brilhante somente acessível aos yogī-s iluminados. Como tal, ela é a Grande Mãe que eles experienciam em si mesmos. Como kuṇḍalinī ela é pura bem-aventurança, o poder da Luz que reside em todos os seis centros (cakra) do corpo, e assim ela é as seis formas em si. Como o poder da consciência ela é a fonte de todos os mantras e como tal a forma dos três aspectos: Supremo (Parā), Mediano (Parāparā) e Inferior (Aparā). Nesta forma trina, ela é, assim como na doutrina Trika, Mālinī, consistindo das cinqüenta letras do alfabeto sânscrito em um estado de desordem, siimbolizando a ascensão da kuṇḍalinī e a ruptura da ordem cósmica que ocorre quando ela é reabsorvida na Suprema Matriz (parayoni) – a deusa Kubjikā – de onde ela originalmente foi emitida. Neste nível a deusa reside em um estado que está além da mente (unmanābhāvātītā) como o poder divino de Śiva (śāṃbhavaśakti) em vontade, sabedoria e ação. Ela possui então três formas (trirūpā) e sua viagem cósmica se dá ao longo de três caminhos (tripathagā), os lados do triângulo do órgão de geração (bhaga) que é tanto a fonte quanto o fim de toda criação. Nas extremidades deste triângulo estão alocados os Mahāpīṭhas: Pūrṇagiri, Jālandhara e Kāmarūpa. No centro está Oḍiyānapīṭha onde a deusa reside em união com o divino liṅga, cuja natureza é bem-aventurança e cuja semente (bindu) é o Céu da Consciência. No centro da união entre Akula e Kula, a deusa, como o poder de Rudra (rudraśakti), permeia cada parte do triângulo como sua soberana e Senhora dos mistérios Kula (kuleśvarī). Desta forma ela é conhecida como Mahākaulikā e Bhairavī.

O Ciñcinīmatasārasamuccaya descreve Kubjikā. Seu corpo é consciência pura e confere bem-aventirança e excitação do poder de iluminação da consciência em si. Como o poder da consciência, ela é também a Fala e como tal é adornada com as cinqüenta letras do alfabeto e reside nesta forma dentro do divino triângulo de Três Cumes, de onde ela desce pelo Caminho de Meru. O Mālinīvijayottaratantra diz que, de acordo com o colofão, Kubjikā emergiu de sua Sagrada Morada Primordial (ādyapīṭha) ao longo do Caminho de Meru. O Kularatnoddyota explica que o Caminho de Meru significa, de acordo com a doutrina Kaula, a Tradição (santāna). O Senhor da Tradição é o Grande Meru, o Supremo Céu de Consciência que conhece sua verdadeira natureza completamente. É deste lócus que a origem da seqüência do desdobramento progressivo da consciência se iniciou, assim como a transmissão da doutrina chamada de Morada Primordial (ādyapīṭha) se originou, bem no centro de Kailāsa e Malaya. O Senhor reside aqui com seu poder que permeia todas as coisas.

Embora não seja possível, com base nas evidências disponíveis, dizer algo definitivo sobre onde o culto de Kubjikā se originou, se nós assumirmos que os Tantras desta escola estão repletos de uma linguágem e significado simbólico acerca do ambiente e localidades onde o culto originalmente se desenvolvel, parece que estamos no caminho correto quando afirmamos que sua origem provável possa ter ocorrido em algum lugar dos Himalaias. Podemos averiguar e encontrar suporte na afirmação de que este culto foi muito conhecido nas montanhas do norte da Índia durante o primeiro período de seu desenvolvimento, de acordo com o Kubjikāmatatantra, escritura onde encontramos os principais elementos do culto, além do poderoso e secreto mantra para se adorar Kubjikā. O Mālinīvijayottaratantra se refere ao Kubjikāmatatantra como um rico material para estudo e prática, e o Gorakṣasaṃhitā prescreve que o sagrado diagrama de Kubjikā deve ser pintado com fluídos sexuais misturados com veneno.[3]

O estudo do culto a Kubjikā e dos Tantras da Tradição Kaula está apenas começando. Espero que seus importantes textos sejam editados e estudados em um futuro próximo. Não há dúvida de que este culto é uma das mais importantes escolas no grande escopo da Tradição Kaula, não só por sua riqueza simbólica, ritualística e filosófica, mas porque ele pode nos mostrar importantes aspectos sobre a história do tantrismo hindu que até o presente se encontram desconhecidos.

Notas

[1] Veja meu ensaio O Culto da Deusa Kubjikā – o Secreto Culto da Deusa Kaula de Newar, brevemente a ser lançado na forma de e-book por Kaula Yoga Publicações. Veja também Mark S.G. Dyczkowski, The Canon of the Śaivāgama and the Kubjikā Tantras of the Western Tradition, State University of New York Press, Albany, New York, 1987; Do mesmo autor, veja The Section concerning the Virgin Goddess of the Manthānabhairavatantra. 14 volumes. Kalāmūlakośa Series of the Indira Gandhi National Centre for the Arts in conjunction with Motilal Banarsidass, 2009; e Kubjikā, Kālī, Tripurā and Trika. Monograph series vol. no. 20. The Nepal Research Centre. 2001
[2] O Culto da Deusa Kubjikā – o Secreto Culto da Deusa Kaula de Newar, brevemente a ser lançado na forma de e-book por Kaula Yoga Publicações.
[3] Veneno, aqui, se refere ao rajas (sangue menstrual) ou sangue produzido pela defloração de uma virgem. Como enfatizei em meu ensaio sobre as escolas de linha vāmācāra (Os Tantras Sofisticados de Orientação Śākta, ainda a ser publicado na forma de e-book por Kaula Yoga Publicações), os seguidores desta tendência de comportamento tântrico adoram a kulastrī de diferente maneiras. Existe uma conexão entre este tipo de adoração e o kumārīpūjā, um procedimento de adoração ritual inserido na tradição Paścimāmnāya, i.e. o culto à Deusa Kubjikā. Eu disse que a kulastrī não significa dona de casa, como propõem muitos acadêmicos; ao contrário, é um título dado a algumas mulheres dentro da Tradição Kaula segundo sua classificação como veṣya. A mulher que recebe este título é uma sacerdotisa especialmente escolhida para atuar como o Princípio Feminino nos rituais de adoração à Deusa (pañcamakāra, cakrapūjā ou rahaṣyapūjā) onde a utilização do kulapuṣpa (sangue menstrual) é essencial. Todas as mulheres simbolizam a Śakti, todavia, uma vez que a kumārī (virgem) é sua forma mais elevada, uma das maneiras de se adorar a Grande Deusa é pela defloração ritual da virgem no kumārīpūjā. Este procedimento reside no seio da tradição Paścimāmnāya. O Kubjikāmatatantra (XVI: 23-42) descreve um ritual onde uma jovem de dezesseis anos é adorada pelo olhar (dṛṣṭi), focando a meditação (dhyāna) em cada parte de seu corpo enquanto há a recitação mântrica sem a influência da paixão sensorial. É dito que este ritual tem grande mérito se a jovem estiver no período de catamênio e à Deusa for visualizada residindo em sua yoni (vulva).

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