sábado, 22 de novembro de 2008

Pratyabhijñā


A Filosofia do Reconhecimento & a Doutrina da Vibração

Por Fernando Liguori


[Nota: o presente texto faz parte do ensaio Śaivismo Trika da Caxemira, a ser publicado em e-book por Kaula Yoga Publicações.]

Até o presente nós tratamos dos componentes do Śaivismo da Caxemira conectados diretamente a tradição tântrica dos Śaivāgamas, i.e. as escolas Kaula, Krama e Trika. As próximas escolas a serem consideradas, Pratyabhijñā (Filosofia do Reconhecimento) e Spanda (Doutrina da Vibração), ao contrario das outras, não estão conectadas diretamente as arcaicas tradições agâmicas. Ambas têm, por esta razão, uma importância peculiar por seu próprio mérito e merecem ser consideradas separadamente como escolas independentes, embora compartilhem muitos pontos em comum e tenham influenciado profundamente uma a outra.

Pratyabhijñā representa a expressão máxima do Śaivismo monista, sistematicamente elaborado em uma teologia racional de Śiva e uma filosofia de absoluta consciência com a qual Ele é identificado. Pratyabhijñā deriva seu nome das Estâncias do Reconhecimento de Deus (Īśvarapratyabhijñākārikā) escritito por Utpaladeva por volta do início do Séc. X d.C. Utpaladeva compreendeu que a experiência máxima da iluminação consiste de um profundo e irreversível reconhecimento de que a verdadeira natureza humana é Śiva em Si-mesmo. Ele diz:

O homem cego pela ignorância (māyā) e confinado por suas ações (karma) é agrilhoado na roda de nascimentos e mortes, mas quando o conhecimento inspira o reconhecimento de sua divina soberania e poder (aiśvarya), ele, completamente consciente, torna-se uma alma liberada.[1]

De acordo com Utpaladeva, a alma é confinada porque se esqueceu de sua autêntica identidade e pode somente alcançar a liberação, o mais elevado objetivo da vida, pelo reconhecimento de sua verdadeira natureza universal. Na realização de que tudo faz parte de si mesma, estendendo sua essência nas mais maravilhosas e diversas formas, a alma agrilhoada alcança este reconhecimento com a convicção de que não é escrava da criação (paśu), mas seu mestre (pati). Neste caminho, aquele que antes se julgava fraco, agora descobre sua força espiritual. Falhando em reconhecer sua identidade com Śiva, a única Realidade que é a Vida e a Essência de todas as coisas criadas, a alma percebe somente sua identidade individual e, portanto, separa todos os outros aspectos da criação de si mesma. Por esta razão ela é aparentemente manchada por suas ações e afligida pela miríade de condições que se destacam como obstáculos a realização de seus objetivos.[2] Desejando ardentemente a liberação, ela é como uma jovem mulher que anseia ser desposada por um homem bonito. Tendo ouvido falar de suas inúmeras qualidades agradáveis, ela começa a amá-lo, embora nunca tenha-o visto. Um dia eles têm a chance de se encontrar, mas ela permanece indiferente até que perceba que ele possui as qualidades do homem que por tanto tempo ansiou se casar e, para seu grande deleite, ela o reconhece.[3] Similarmente, assim como um homem e sua esposa se tornam um em espírito, a alma agrilhoada se torna una com Śiva reconhecendo sua identidade com ele, tornando-se liberada.

O professor de Utpaladeva foi Somānanda cuja Visão de Śiva (Śivadṛṣṭi) fora o primeiro trabalho da escola do Reconhecimento. Somānanda viveu no final do Séc. IX d.C. e foi, ele mesmo diz, o décimo nono na linha de sucessão de Tryambhaka. Tryambhaka, de acordo com Somānanda,[4] foi o filho nascido da mente de Durvāsas,[5] quem lhe ensinou os princípios do monismo Śaiva após tê-lo aprendido direjtamente de Śrīkaṇṭha (uma forma de Śiva)[6] no Monte Kailasa. Tryambhaka figura novamente em outro relato, desta vez em um que se refere a origem da tradição Trika.[7] De acordo com esta história, Durvāsas foi instruído por Śrīkaṇṭha (aqui descrito como uma encarnação de Śiva) a espalhar a sabedoria Trika (ṣaḍardhakrama) a qual é a essência do segredo de todas as escrituras Śaivas.[8] Durvāsas então gerou de sua mente tres yogī-s perfeitos: Tryambhaka, Āmardaka e Śrīnātha, que, respectivamente, revelaram a doutrina Śaiva da não-dualidade, dualidade, e não-dualidade com dualidade.[9] Destes, a linhagem (sampradāya) fundada por Tryambhaka que transmite a doutrina monista do Śaivismo não é outra senão a Trika.[10]

Com base nesta conexão J.C. Chatterjee cogitou que a escola Pratyabhijñā fosse a própria filosofia Trika, identificando-as como apenas uma, assim como o fez K.C. Pandey.[11] Ao mesmo tempo, Pandey tomou Tryambhaka destes relatos como sendo o lendário ancestral[12] de Somānanda, distinguindo assim o monismo Śaiva como um todo fundado por Tryambhaka da filosofia Pratyabhijñā iniciada com Somānanda.[13] Presumivelmente, Pandey acreditava que a tradição Trika fosse a forma original do monismo Śaiva, do qual a filosofia Pratyabhijñā foi um desenvolvimento posterior, iniciado por Somānanda. Parece mais provável, contudo, que a escola Trika foi tradicionalmente identificada desta forma com o monismo Śaiva como um todo para acentuar sua importância. Da mesma forma, Somānanda atribuiu as origens de seu próprio sistema a uma figura mítica popular associada com as origens do Śaivismo Agâmico a fim de lhe incutir a autoridade de uma tradição baseada nas escrituras. Para fazê-lo, ele se apoiou em um relato mítico já existente sobre as origens das raízes monistas nos Āgamas. Utpaladeva, portanto, justifica-se referindo a filosofia Pratyabhijñā ensinada por Somānanda como um Novo Caminho.[14] Esta doutrina é, portanto, um produto que nasceu na Caxemira. Jayaratha, o comentador da obra de Abhinavagupta, conseqüentemente diz que a doutrina da Unidade do Senhor (īśvarādvayavāda), iniciada por Somānanda, floresceu na Caxemira e de lá se espalhou para outras partes da Índia, onde foi recebida como um produto daquela terra, tão precioso e único como o próprio açafrão.[15]

A importância da escola Pratyabhijñā no desenvolvimento do Śaivismo da Caxemira reside na exposição rigorosamente filosófica dos princípios fundamentais do monismo Śaiva que os Śaivas da Caxemira consideram ser essencialmente comum a todas as escolas do Śaivismo da Caxemira. Através da filosofia Pratyabhijñā o monismo das escolas tântricas e seu idealismo foi sustentado por um bom argumento e análise dos problemas fundamentais que qualquer filosofia profunda, nascida no âmago do contimnente pan-indiano, deveria abordar. Estes problemas incluem a natureza da casualidade, o problema da mudança e continuidade, a natureza do Absoluto e sua relação com suas manifestações e a relação entre Deus e o homem.

Somānanda e Utpaladeva desfrutam a distinção de terem introduzido uma série de conceitos fundamentais anteriormente desconhecidos ou mal compreendidos. Certamente, a mais importante destas novas idéias foi o conceito de Superego. De acordo com estes filósofos a Realidade Última é Śiva, a identidade de todos os seres como puro Eu Consciência. Esta idéia completamente original teve uma importante repercussão nos filósofos monistas posteriores, através dos quais os Tantras foram interpretados. Digno de nota, também é o fato de que os exemplos do que é menos original nesta filosofia não se encontram nos Āgamas (embora seja certo que, como professado, estejam em harmonia com o monismo), mas nas obras de filósofos antigos e assim devem ser considerados como pertencendo a história da filosofia indiana ao invés da religião.

Uma importante fonte da filosofia Pratyabhijñā é, por exemplo, a filosofia Śaivasiddhānta (que não deve ser confundida com os Siddhāntāgamas). Embora a escola Śaivasiddhānta seja de orientação dualista, insistindo na distinção entre Deus e a alma individual, no entanto, ela antecipa muitos dos elementos essenciais da Filosofia do Reconhecimento. Particularmente importante a este respeito é a análise fenomenológica que o Siddhānta faz do Ser, acentuando a realidade da experiência. O mundo é muito real[16] e a consciência é a natureza essencial de ambos Deus e alma, apesar de suas diferenças igualmente essenciais. Consciência é a percepção direta de entidades como elas são em si mesmas, na medida em que a experiência-como-tal (anubhava) se encontre livre das constrições mentais.[17]

Somānanda estava preocupado em refutar suas rivais escolas hindus; ele não atacava o tradicional inimigo dos filósofos hindus, i.e. os budistas. Utpaladeva, ao contrário, edifica a Pratyabhijñā como uma crítica a doutrina budista do não-ser (anātmavāda)[18] e neste caminho ele claramente estava seguindo as pegadas de seus precursores Śaivas dualistas. De uma forma reminiscente a última argumentação de Utpaladeva, o Siddhānta aponta o fenômeno do reconhecimento como uma prova de que os objetos não são momentâneos, mas essenciais para linguagem ser possível.[19] Ademais, o Ser-Consciência, argumenta o Siddhānta, deve permanecer inalterado a fim de que possa conecatar-se a percepção anterior de um objeto previamente percebido e seu recolhimento para que seu reconhecimento com o mesmo possa ser possível. Mas esta argumentação só é feita para provar a unidade essencial subjacente às duas percepções.[20] Ele não pensa no reconhecimento como a capacidade intuitiva da consciência para compreender sua própria natureza. Essa extensão da faculdade de reconhecimento comum a todo ato de percepção determinativa ocorre pela primeira vez com Utpaladeva.

O desenvolvimento do significado e a implicação do conceito do reconhecimento é um emblema do desenvolvimento lógico desta fase da história do pensamento filosófico indiano na transição do dualismo ao monismo Śaiva. Isso ressalta o fato de que a escola Pratyabhijñā se desenvolveu como pano de fundo a especulação filosófica e teológica. A escola Spanta e sua Doutrina da Vibração é melhor compreendida, contudo, como um desenvolvimento das aplicações práticas das doutrinas yogī-s das tradições agâmicas da Caxemira.

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Notas:

[1] ĪP III: 2.2.

[2] ĪP III: 2.3.

[3] ĪP IV: 2.2.

[4] ŚDṛ XII: 109-123.

[5] O legendário sábio Durvāsas está intimamente relacionado a Śiva em ambos os Purāṇas e Āgamas. De acordo com o Brahmāṇḍapurāna, as circunstâncias de seu nascimento são as seguintes. Certa vez, surgiu uma discussão entre Brahman e Śiva. Śiva ficou muito irritado e sua aparência ficou tão assustadora que os deuses fugiram aterrorizados. Pārvatī, sua esposa, também ficou assustada com ele e exclamou: durvāsaṃ bhavati me, o que siginifica tornou-se impossível para mim viver com você! Śiva percebeu que sua ira causou muito sofrimento inútil e depositou-a no ventre de Anusūyā, quem deu nascimento ao sábio Durvāsas. Portanto, Durvāsas é considerado como um aspecto (aṃśa) de Śiva. Comumente retratado como um devoto de Śiva nos Purāṇas, Durvāsas também é particularmente associado com os Śaivāgamas. De acordo com o Harivaṃśa, Kṛṣṇa foi instruído nos sessenta e quatro Āgamas monistas por Durvāsas, o responsável por estas revelações na presente kali yuga. O Siddhānta também venera Durvāsas e o identifica com Āmardaka e, em alguns cânones, ele o precede.

[6] O Śaivāgama, de acordo com Abhinavagupta, é dividido em duas grandes correntes (pravāha): uma origina-se com Lākulīśa e a outra com Śrīkaṇṭha. Esta última consiste de cinco correntes (srotas) e constitue a maioria dos Śaivāgamas. TĀ 36: 13b-17.

[7] J.C. Chatterjee citou longamente, como parte dos comentário de Jayaratha sobre o Tantrāloka, trechos a este respeito que somente podem ser rastreados em edições impressas. J.C. Chatterjee, Kashmir Shaivism, p. 6, nt. 1.

[8] nikhilaśaivaśāstopaniṣatsārabhutasya ṣaḍardhakramavijñānasya. J.C. Chatterjee, Kashmir Shaivism, p. 6, nt. 1.

[9] TĀ 36: 11-12.

[10] teṣu mateṣu praśastam advayārthaviṣayakaṃ trikākhyamataṃ traiyambakasampradāyakaṃ sarvaśreṣṭhṃ praśasyate. J.C. Chatterjee, Kashmir Shaivism, p. 6, nt. 1.

[11] Nós sabemos que a palavra Trika é utilizada no contexto da filosofia monista apresentada nos Śaivāgamas, revelados a humanidade por Durvāsas através do filho nascido de sua mente, Tryambhaka, por ordem de Śrīkaṇṭha. (K.C. Pandey, Abhinavagupta, an Historical & Philosophical Study, p. 599.) Ele se refere a Jayaratha (TĀ I, p. 28) que falou sobre o sistema introduzido a humanidade pelos descendentes de Tryambhaka como ṣaḍardhakramavijñāna. Conclui que portanto, é inquestionável que a palavra Trika seja usada para o sistema Pratyabhijñā também. (K.C. Pandey, Abhinavagupta, an Historical & Philosophical Study, p. 600.)

[12] K.C. Pandey, Abhinavagupta, an Historical & Philosophical Study, p. 135-6.

[13] K.C. Pandey, Abhinavagupta, an Historical & Philosophical Study, p. 137.

[14] ĪP IV: 2.1.

[15] R.K. Kaw, The Doctrine of Recognition (Hoshiarpur, 1967), p. 4.

[16] A filosofia Siddhānta estava correta desde seus primórdios no que concerne em estabelecer a validade de nossa experiência cotidiana de que o mundo é real. De acordo com Sadyojyoti, um antigo adepto Siddhānta cujas obras ainda existem, nunca condene a percepção, inferência e outros meios de conhecimento como ilusórios. Seu respeito pelo testemunho objetivo deve ser tão elevado quanto para a revelação mais reverenciada. Sadyojyoti tentou, com grande sucesso, provar a existência de tudo, seja secular ou de outra maneira, por métodos inteligíveis a todos. (The Nareśvaraparīkṣā of Sadyojyoti with commentary by Rāmakaṇṭha, KSTS, XLV, editado por Madhusūdana Kaula Śāstri, 1926, Introdução, p. 11).

Sivaranaman escreveu: Śaivasiddhānta se aproxima da realidade de Deus em um espiríto diferente. A teoria do mundo ilusório não é uma formulação necessária da consciência religiosa que está viva a realidade de Deus mais como ‘Tu, o Absoluto’ do que, em geral, fenômenos negativamente implícitos. K. Sivaranaman, Śaivism in Philosophical Perspective (Varanasi: Motilal Banarsidass, 1973), p. 66. A fenomenologia da percepção requer a existência autêntica do mundo perceptível. Isto é, a priori, a base para qualquer discussão sobre sua possível natureza. Expressando o ponto de vista Siddhānta, Sivaraman escreveu: Mas para demonstrar a verdade significante sobre a existência do mundo no tempo, há que se reconhecer o que o mundo é. O mundo tem de existir. A declaração mais formal acerca do ‘mundo’ que envolve o mínimo de teoria é que o mundo inteligível ao nosso entendimento é sine qua inteligível como inexistente, em qualquer sentido que o termo ‘mundo’ é compreendido. K. Sivaranaman, Śaivism in Philosophical Perspective, p. 56. A teologia Siddhānta se preocupa em demonstrar a existência do mundo real para que possa provar a existência de Deus, Quem é sua causa.

[17] Sadyojyoti escreveu: Agora, porque a natureza da consciência é experiência-como-tal (anubhava), é correto compará-la com a percepção direta. Portanto, o objeto imediatamente em nossa frente no campo da (pura) experiência é desprovido de não-ser. Deveria ficar claro que existe uma evidente distinção entre a consciência e seu objeto. O caráter do primeiro é experiência enquanto que do último é aquilo que é experienciado. (Nareśvaraparīkṣā, I: 8-9).

[18] Veja The Kashmiri Śaiva Response to the Buddhist Challenge por Mark S.G. Dyczkowski, conferência proferida no na Sétima Conferência Mundial de Budismo, Bologna.

[19] Na primeira seção do Nareśvaraparīkṣā, Sadyojyoti procura estabelecer a existência da alma individual tanto quanto um observador quanto um agente. Seu principal oponente aqui é o Budismo. De acordo com o Madhusūdana Kaula: os budistas recebem uma severa surra nas mãos de nossos autores e são derrotados de forma mais sistematica e direta do que qualquer outra escola. (Nareśvaraparīkṣā, Introdução, p. 12).

[20] Sadyojyoti escreveu: Portanto, apesar de um objeto poder mudar até certo ponto, percebe-se que ele é inerentemente estável, pois é reconhecido [como o mesmo em todos os momentos]. (Nareśvaraparīkṣā, I: 34). Na falta do reconhecimento, diz Sadyojyoti, a linguagem não pode ser possível. Quando ouvimos sons podemos distinguir e reconhecer seus componentes fonêmicos intrínsecos e conectá-los as palavras que transmitem um sentido (mais uma vez detectado, através do reconhecimento). Assim temos a linguagem. (Nareśvaraparīkṣā, I: 35-41).

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