quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Upāyas


[Nota: o texto que segue é uma explicação sobre os recursos ou métodos – upāyas – por Svāmī Lakṣmanjoo do capítulo 5 de seu livro Kashmir Śaivism – The Secret Supreme. Tradução de João Carlos Barbosa Gonçalves. Revisão e edição de Fernando Liguori.]

O sentido da palavra sânscrita upāya é recurso. A palavra upāya no Śaivismo da Caxemira é utilizada para indicar o recurso com que se adentra na Consciência Divina Universal a partir da consciência individual. Nosso Śaivismo proclama que há três recursos pelos quais se adentra na Consciência Divina Universal: Śāmbhavopāya, o recurso supremo; Śāktopāya, o recurso mediano; e Āṇavopāya, o recurso inferior.

Śāmbhavopāya

Śāmbhavopāya, o recurso supremo, funciona em mātṛkācakra, pratyāhāra e pratibimbavāda. A definição dada no Mālinī-vijayotara-tantram para Śāmbhavopāya diz que ele é o recurso no qual é mantido o estado de não pensamento. Ao preservar o estado de não pensamento, isto é, não tendo pensamentos e mantendo a continuidade do não pensar, e com a graça do mestre, penetra-se naquela consciência transcendental onde se percebe que este universo é proveniente de frases e mais frases, que são provenientes de palavras e mais palavras, que são provenientes de letras e mais letras, que são provenientes daquele “eu” real que é Paramaśiva. Aqui, percebe-se que o universo inteiro está refletido na sua própria consciência, e que ele está refletido a partir de dentro, mais do que de fora.

Śāmbhavopāya é chamado de icchopāya porque se origina de icchā-śakti e porque é este o recurso que já existe no estado que está sendo mediado. No Śāmbhavopāya, não há meio a se recorrer. Ele é o próprio recurso. Não há onde ir. Deve-se apenas residir no recurso. O resto é automático. Aí, somente é necessária a graça do mestre. Deve ser entendido, entretanto, que você mesmo deve chegar a esse ponto onde você reside no estado mediado e isso se realiza ao manter-se a continuidade do estado de não pensamento. Até esse ponto, porém, há algo ainda a ser feito. Quando você reside no estado mediado, aí então é a graça de seu Mestre que leva você. Você deve alcançar aquele estado que somente seu mestre vai iluminar para você. Isso significa que você precisa mergulhar na consciência de seu mestre. Nesse estado, você não existe, somente seu mestre existe. Os Mestres selecionam para este upāya somente os discípulos que sejam muito desenvolvidos em seu despertar. Até então, não serão aceitos pelo Mestre para este upāya. Neste upāya, o Mestre funciona mais do que o discípulo.

Em nosso Śaivismo da Caxemira, nós dizemos,

svamuktimātre kasyāpi
yāvadviśvavimocane
pratibodheti khadyota –
ratnatārendu sūryavat Tantrāloka XII: 159

Um vagalume brilha apenas para si mesmo, as jóias brilham não apenas para si mesmas mas também para uns poucos, as estrelas brilham para muitos, a lua brilha para ainda mais, e o sol brilha para todo o universo. Do mesmo modo, aquele que está estabelecido no estado de Śāmbhavopāya brilha como o sol do meio-dia para todo o
universo.

Assim como o vagalume tem luz suficiente apenas para mostrar seu próprio corpo, há aqueles yogī-s que são suficientes somente para si mesmos; eles não têm como auxiliar ninguém mais. Há também os yogī-s que, como jóias, brilham de modo que sua luz ilumine aqueles que estão próximos. Aqueles que brilham como estrelas iluminam ainda mais com sua luz. Aqueles que brilham como a Lua iluminam ainda mais. Mas um yogī śaiva, estabelecido em Śāmbhavopāya, é como o Sol – ele ilumina todo o universo.

Śāktopāya

Śāktopāya é aquele upāya que funciona por intermédio das energias. Śāktopāya é chamado de jñānopāya, visto que é ele o recurso que se origina da jñāna-śakti, a energia do conhecimento. Aí, o aspirante é mais importante do que o Mestre, porque ele deve fazer-se capaz de receber a graça do Mestre. Ele deve trabalhar para desenvolver uma grande velocidade de consciência até que ele alcance os pés do Mestre. Com isso, não quero dizer os pés dos mestres de forma material. Estar aos pés do mestre significa alcançar um estando em que o aspirante é capaz de receber a graça do Mestre. Daqueles que alcançam tal estado é que se diz que estão aos pés do mestre.

No Śāktopāya, o yogī não tem de recitar mantras ou utilizar sua respiração para despertar ou concentrar-se em qualquer ponto em particular. Ele deve apenas ver e concentrar-se naquele Ser Supremo que é encontrado em duas ações sem ações. No Vijñānabhairavatantra, isto é chamado de centramento.

No Śāktopāya, o centramento pode ser praticado entre todas e quaisquer ações e pensamentos. No centramento, o yogī deve desenvolver grande velocidade de consciência. Grande velocidade significa firmeza de consciência. A consciência não pode tornar-se frouxa. Se a consciência do yogī torna-se frouxa, ele será obrigado a sair do Śāktopāya para o upāya inferior, o Āṇavopāya. Ele perderá o direito de trilhar o caminho do Śāktopāya. Nessa prática, deve haver continuidade no ciclo da consciência. Somente ao manter uma corrente de consciência inquebrável, ele estará apto a descobrir a realidade que há entre dois pensamentos ou ações. A prática do centramento é concebida para atuar no intermédio de duas ações ou dois pensamentos quaisquer. Pode-se centrar entre dois pensamentos ou entre dois movimentos, entre um pensamento e outro, entre o acordar e o sonhar, entre um passo e o passo seguinte, entre uma respiração e outra. Todas as ações e todos os pensamentos constituem uma estrutura adequada para a prática do Śāktopāya. O Śāktopāya yogī deve simplesmente inserir uma consciência contínua no centro de duas ações ou pensamentos quaisquer. Se sua consciência é falha e não é ininterrupta, então ele cai e penetra no upāya inferior, Āṇavopāya.

Āṇavopāya

O Āṇavopāya está interessado no aṇu, a alma individual. O Āṇavopāya é o upāya que funciona por meio da atividade de concentração em uccāra (respiração), karaṇa (órgãos dos sentidos), dhyāna (contemplação), e sthāna-prakalpanā (concentração em um lugar específico).

A palavra uccāra significa respiração, na verdade concentração na respiração. A concentração na respiração é o elemento essencial da prática do cakrodaya. Ao praticar o cakrodaya, você deve permanecer respirando profundamente e encontrar o ponto, o centro entre duas respirações, entre a inspiração e a expiração. É este o ponto final, o ponto inicial e também ponto intermediário da seqüência da respiração. No cakrodaya, entretanto, os pontos final e inicial da seqüência da respiração são predominantes. Isso é uccāra, concentração na respiração. Pode ser tanto com som, como sem som.

Karaṇa significa órgão e, em particular, significa órgão de sentido. A concentração no karaṇa implica possuir e manter unidade de foco através da visão ou de qualquer outro órgão do sentido. No karaṇa, o sentido da visão é o que predomina. Por exemplo, ao concentrar-se no karaṇa através do sentido da visão, você deve olhar para algo em particular. Deve permanecer olhando sem piscar os olhos. Deve continuar olhando aquele único ponto com uma consciência ininterrupta. E, quando aquele ponto desaparecer – deverá e irá desaparecer – você penetra na vastidão do centro, que é a meta. Se você for praticar a concentração no karaṇa através do sentido da audição, então você deverá ouvir algum som e continuar ouvindo e repetindo aquele som sem parar. Pode também praticar concentrando em algum sabor ou sensação tátil. No karaṇa, você pode empregar os cinco órgãos de sentido. Com os sentidos que não sejam o da visão, deve-se ficar atento com relação ao local onde a sensação surge inicialmente. Isso é o método do karaṇa no Āṇavopāya e, a longo prazo, cria unidade de foco.

A palavra dhyāna significa contemplação. É outra possibilidade no Āṇavopāya. Dhyāna é a contemplação em algum ponto. Há várias formas de dhyāna. Por exemplo, você está praticando dhyāna quando contempla o lótus em seu coração, ou no sentido de algum mantra tal como o mantra so’ham ou o mantra śiva. Essa é a forma mais elevada de Āṇavopāya, visto que ela é contemplação sem imagem ou forma. Se você contempla o Senhor Śiva com uma imagem em particular, trata-se então de uma forma inferior. É a contemplação com forma.

Portanto, a qualquer momento na meditação em que há um mantra, há também o dhyāna. E, ao longo do dhyāna (a não ser no início), você pode também conciliar karaṇa e uccāra.

Sthāna-prakalpanā significa concentração em um lugar em especial. A forma mais elevada de sthāna-prakalpanā, que é a prática mais elevada do Āṇavopāya, é aquela prática onde você descobre que cada aspecto da realidade é encontrado na sua respiração. Você vê onde residem os devas, onde residem os lokapālas, onde se localiza a aurora, onde está a manhã, onde está o meio-dia, onde está o pôr-do-Sol (sandhyā), onde está a meia-noite, onde está o espaço de tempo quando o Sol se move em direção ao Norte, e onde está o espaço de tempo quando o Sol se move em direção ao Sul. Isso tudo é o sthāna-prakalpanā, e esses são pontos em particular a se concentrar, e a descobrir no curso de sua respiração.

A segunda sthāna-prakalpanā, que é a forma inferior de Āṇavopāya, refere-se a quando você se concentra em diferentes pontos de seu corpo. Esses pontos específicos para a concentração se dividem em três. Um dos lugares de concentração é o meio das sobrancelhas (bhrūmadhya). O segundo lugar para a concentração é a cavidade da garganta (kaṇṭha-kūpa). E o terceiro lugar de concentração é o coração (hṛdaya).

Todos esses processos, uccāra, karaṇa, dhyāna e sthāna-prakalpanā são chamados de upāyas de jīva, o recurso do indivíduo, e eles existem no Āṇavopāya.

O Āṇavopāya é o recurso encontrado no mundo da dualidade e é chamado de bhedopāya. O recurso que existe no mundo da mono-dualidade, mundo onde dualidade e não dualidade existem conjuntamente, é Śāktopāya é chamado bhedābhedopāya. Aquele recurso que existe no mundo do monismo puro (abheda) é o Śāmbhavopāya e é chamado de abhedopāya.

Śāmbhavopāya é também chamado de icchopāya, enquanto recurso que existe em icchā-śakti. O recurso que existe em jñāna-śakti é Śāktopāya e é chamado de jñānopāya. Āṇavopāya é chamado de kriyopāya porque é o recurso que é encontrado em kriyā-śakti.

A diferença entre Āṇavopāya, Śāktopāya e Śāmbhavopāya é esta. No Āṇavopāya, a força de sua consciência é aquela em que você deve buscar amparo em todas as coisas para manter e fortalecer sua consciência. Ainda que você se concentre no centro, você deve obter o suporte em dois elementos para concentrar-se naquele centro. No Śāktopāya, sua consciência é ampliada na medida em que somente um único ponto é necessário para sua concentração, e esse ponto é o centro. No Śāktopāya, você inicia com o centro e então passa a estabelecer-se ali. No Śāmbhavopāya, a força de sua consciência é aquela em que nenhum amparo é necessário. Você já reside na realidade a ser alcançada. Não há onde ir, você já reside no seu próprio ponto. O resto é automático.

É importante perceber que, ainda que haja diferentes upāyas, todos eles conduzem ao estado da consciência unitária transcendental. A diferença entre esses upāyas é que o Āṇavopāya o conduzirá por um longo caminho; o Śāktopāya, por um caminho mais breve; e o Śāmbhavopāya, por um mais breve ainda. Ainda que haja caminhos diferentes, o ponto a ser alcançado é único.

Anupāya

Além desses três upāyas, Āṇavopāya, Śāktopāya e Śāmbhavopāya, há um outro upāya. Ainda que não seja de fato um upāya, ainda assim ele é mencionado no Śaivismo da Caxemira. Esse upāya é chamado de anupāya. A palavra anupāya significa não upāya. O estado de não pensamento é chamado de Śāmbhavopāya. Unidade de foco é chamada de Śāktopāya. A concentração e seus amparos, como o mantra, a respiração e outros elementos, são chamados de Āṇavopāya. Além de todos esses, há o anupāya. No anupāya, o aspirante deve apenas perceber que não há nada a ser feito. Esteja como já está. Se você está falando, continue falando. Se você está sentado, continue sentado. Não faça nada, resida apenas em seu próprio ser. Essa é a natureza do anupāya. O anupāya é atribuído à ānanda-śakti de Śiva e é chamado também de Ānandopāya.

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