segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

O Śaivismo da Caxemira como a culminação da Filosofia Tântrica


Por Fernando Liguori

De todo escopo que sustenta as escolas tântricas e suas denominações como Śaiva-Śākta, Vaiṣṇava e Budista, a tradição Śaiva-Śākta supera as outras e forma o modelo tântrico mais completo. O que se segue são as razões para se colocar a tradição Śaiva ou Śaiva-Śākta acima das outras tradições. Primeiro, a tradição Śaiva é mais profunda, pois ela lida com todos os temas e, assim podemos dizer, sub-temas do tantrismo. As outras escolas não são tão profundas, pois ignoram muitas questões fundamentais. Segundo, o conceito de dinamismo (śakti), ou atividade (kriyā) da Consciência, que é um conceito chave na filosofia tântrica, é discutido detalhadamente pela tradição Śaiva, e a natureza deste dinamismo ou atividade é completamente explorada. Outras escolas não apresentam o tema com a mesma perfeição. Terceiro, a tradição Śaiva, em sua utilização da doutrina da mão-esquerda, demonstra claramente o espírito do tantrismo: a aceitação do mundo e a assimilação dos valores materiais aos espirituais, o que salvaguarda a tradição genuinamente. Por exemplo, o sādhanā da tradição Aghora, além de fazer uso dos Cinco Ms, também utiliza substâncias ainda mais impuras como urina e excremento.

A filosofia do tantrismo, ou tantrismo Śaiva, é completamente elucidada e exposta em um sistemático, lógico e racional sistema filosófico chamado Trika ou Pratyabhijñā, popularmente conhecido como Śaivismo da Caxemira. Os filósofos do Śaivismo da Caxemira, especialmente Abhinavagupta, explanaram todas as questões do tantrismo, tanto nos aspectos filosóficos e teóricos, quanto nos aspectos religiosos e práticos, desenvolvendo a filosofia tântrica em uma lógica perfeita. Baseando-me nisto, arrisco-me a propor que o Śaivismo da Caxemira seja a culminação da tradição tântrica ou a filosofia central do tantrismo.

Incidentalmente, nós encontramos mais de uma posição metafísica nos Tantras Śaiva. Aqui uma indagação poderia ser levantada: se o Tantra é tido como uma revelação ou como uma verdade experienciada, então por que existem diferentes idéias contidas em seu escopo? Essa questão é levantada no Tantrāloka.[1] O Tantra advoga três posições metafísicas: diferença (bheda), unidade na diferença (bhedābheda) e unidade (abheda). Tecnicamente, o cânone da posição metafísica bheda é chamado de Śiva-Āgama; as obras que compõem o ponto de vista bedhābheda são chamadas de Rudra-Āgama; e os textos que compõem o corpo abheda são conhecidos como Bhairava-Āgama.[2] Assim, diferentes posições filosóficas podem advir da orientação destas Āgamas.[3] Por que a diferença? A diferença é uma adequação para as pessoas a uma prática particular e orientada (adhikārī-bheda), eis a resposta. Na tradição indiana em geral, e na tradição tântrica em particular, é mantido que o mesmo sādhanā, ou caminho, pode não ser adequado para todas as pessoas, pois todas as pessoas não se encontram no mesmo patamar espiritual; existe uma hierarquia de estágios na evolução espiritual. Portanto, diferentes caminhos são prescritos para diferentes níveis de competência. A diferença entre as Āgamas deve-se a diferença entre a audiência. A diferença do significado é mera formalidade.[4] Na medida em que o resultado é concernente ao caminho, não existe diferença; todas eles levam a consecução da Consciência de Śiva.[5]

Na tradição tântrica, a filosofia é convertida em prática (sādhanā); portanto, as filosofias da diferença, unidade na diferença e unidade são prescritas para diferentes tipos de buscadores. Algumas pessoas, talvez a maioria, não compreendem a unidade; elas apenas compreendem a diferença. Portanto, apenas a filosofia da diferença pode ajudá-las. Outras não se satisfazem com a filosofia da diferença; para estas há a filosofia da unidade etc. Portanto, a contradição filosófica não vem das Āgamas, mas da diferença entre os buscadores para os quais os ensinamentos são prescritos.[6] O adepto tântrico é como um médico experiente que não prescreve um único remédio para todos seus pacientes; o medicamento varia de acordo com as necessidades dos pacientes. É por isso que, no curso da espiritualidade indiana, sempre ouvimos casos em que um guru ensinasse diferentes ideologias para diferentes discípulos. O guru conhece a verdade completamente, mas a verdade é somente apreendida pelo discípulo de acordo com seu próprio grau de entendimento.

Podemos levantar mais uma questão aqui: se os três tipos de filosofia citadas acima são destinadas a três tipos diferentes de pessoa, sem julgar qual é superior ou inferior, por que a filosofia da unidade é considerada a mais correta ou superior? A essa questão, Jayaratha, o comentador do Tantrāloka, dá uma interessante resposta.[7] Ele diz que a filosofia da unidade inclui ou sintetiza as outras duas, mas o contrário não acontece; portanto, ela é superior. Ele cita um verso do Tantrāloka: como a mais doce fragrância da flor, a tradição Kaula [uma filosofia não-dualista] esta imanentemente presente em todas as disciplinas [śāstra].[8] Ele sustentava que as outras disciplinas estavam qualificadas a se tornarem veículos para o ideal mais elevado de auto-realização, pois elas eram saturadas com o néctar do não-dualismo absoluto.[9] Unidade inclui diferença; diferença ou multiplicidade (bheda) é aceita, mas colocada em seu devido lugar: os muitos são aceitos como a livre expressão do um. Abhinavagupta dizia que foi Śiva quem primeiro manifestou o mundo da diferença (bheda), declarando-o como um adversário (pūrvapakṣa) e novamente o trouxe concluindo (uttarapakṣa) a unidade (abheda).[10] É o jogo (līlā) do Senhor não-dual manifestar-se livremente na dualidade, negando ao mesmo tempo o status independente da dualidade incorporando-a em si mesmo. Portanto, unidade (abheda) é a mais elevada verdade. A lógica aqui é o que é mais compreensivo é mais verdadeiro

O Advaita Vedānta apresenta a mesma lógica de maneira ligeiramente diferente. Esta filosofia sustenta que a unidade é superior a diferença, pois a diferença pressupõe unidade. Dois diferentes navios de guerra, mesmo quando lutam entre si, navegam sobre o mesmo oceano. Ademais, o mundo da diferença, de acordo com os adeptos do Advaita Vedānta, bem como os adeptos do Śaivismo da Caxemira, é a manifestação da unidade (Brahman ou Śiva); unidade não é a manifestação da diferença. Isso significa que a unidade (Śiva ou Brahman) mantém-se independente por si mesma, portanto ela é superior a diferença (o mundo), a qual depende da unidade. Para usar uma analogia, as ondas estão incluídas no oceano, mas o oceano não está incluído nas ondas. Assim, nós podemos dizer que a diferença está contida na unidade assim como as ondas estão contidas no oceano, pois a diferença é manifestação da unidade. Nós não podemos dizer que a unidade pertence à diferença ou está contida nela.[11] A filosofia da unidade pode incluir em si mesma a filosofia da dualidade, mas o contrário não pode acontecer. É por isso que os dualistas entram em querelas com os não-dualistas, mas os não-dualistas não entram em querelas com os dualistas. O pai do advaita, Gauḍapāda, diz: Os dualistas, estando absolutamente convictos de sua posição, se opõe aos outros, mas esta [filosofia não-dualista] não se opõe a eles.[12]

Para concluir, o não-dualismo (abheda), sendo uma filosofia mais sintética e mais compreensiva, aceita todas as posições – colocando-as em seu devido lugar, lógico – e, portanto, é uma filosofia superior. Seguindo esta lógica, Abhinavagupta sustenta que a filosofia Trika ou bhairava-śāstra, que é não-dual, é a essência da disciplina Śaiva, dividida entre dez, dezoito e sessenta e quatro Tantras.[13]

Notas

1. Tantrāloka-Viveka (TĀV), comentários de Jayaratha.

2. ataśca bheda-bhedābheda-abheda pratipādakaṁ śivarudra-bhairavakhyaṁ tridhaivedaṁ śāstramudbhūtam. TĀV 1. 18, p. 45.

3. Atualmente isso ocorre. A tradição Śaiva-Siddhānta originou-se dos Āgama bheda, o Vīra Śaivismo dos Āgama bhedābheda e o Śaivismo da Caxemira dos Āgama abheda.

4. sarvametat pravṛttyarthaṁ śrotṝṇāṁ tu vibhedataḥ
arthabhedāttu bhedo’yamupacārāt prakalpyate - Mālinīvijaya-Vārtika, 2.275

5. Idem, 2.277.

6. A tradição Budista Mādhyamika explica a diferença nas crenças filosóficas sustentando que qualquer pessoa, por temperamento, é indicada a um clã (gotra) filosófico. Nós aceitamos uma filosofia particular não porque ela seja verdadeira, mas porque inconscientemente gostamos ou nos afinizamos, levando em consideração nosso temperamento. É dito que Buda pregava idéias aparentemente contraditórias para diferentes pessoas. Ele dizia ser um médico que prescrevia diferentes remédios (sādhanā) de acordo com as necessidades de seus pacientes que sofriam no saṁsāra.

7. TĀV 1.18, p. 45.

8. puṣpe gandhastile tailaṁ dehe jīvo jale’ṛtam, yathā tathaiva ṣāstrāṇāṁ kulamataḥ pratiṣṭhitam. TĀ 35.34

9. paramādvayāmṛtapariplāvitaṁ vidadhyāt, anyathā hyasya parapadaprāptinimittatvaṁ na syāt. TĀV 1.18, p. 45.

10. pūrvapakṣatayā yena viśvamābhāsya bhedataḥ
abhedittarapakṣāntarnīyate taṁ stumaḥ śivam IPV 1.2, p. 51.

11. O Senhor (que é a unidade de todos os seres) afirma na Bhagavadgītā 9.4: Todos os seres [i.e. a diferença] estão em Mim, mas Eu não estou neles.

12. Māṇḍūkyakārikā 3.17.

13. TĀ 1.18, 37-17. Esta declaração refere-se as três posições tradicionais concernentes ao número autêntico de Tantras (Āgamas).

Referências

BHATTACHARYA, B. The World of Tantra. Nova Délhi, Índia: Munshiran Manoharlal, 1988.
BHATTACHARYYA, B. Śaivism in the Phallic Word (Vol. II). Nova Délhi, Índia: Munshiram Manoharlal, 1975.
DUPUCHE, John R. Abhinavagupta’s the Kula Ritual as Elaborated in Chapter 29 of the Tantráloka. Nova Delhi, Índia: Motilal Banarsidass Publishers, 2003.
DYCZKOWSKI, Mark S.G. A Journey in the World of the Tantras. Nova Délhi, Índia: Indica Books, 2004.
__________. The Aphorisms of Śiva. Albany: SUNY Press, 1992.
__________. The Canon of the Śaivāgama and the Kubjikā Tantras of the Western Kaula Tradition. Albany: SUNY Press, 1988.
__________. The Doctrine of Vibration: An Analysis of the Doctrines and Practices of Khashimir Śaivism. Albany: SUNY Press, 1987.
__________. The Stanzas on Vibration. Albany: SUNY Press, 1992.
MULLER-Ortega, Paul Eduardo. The Triadic Heart of Śiva: Kaula Tantricism of Abhinavagupta in the Non-Dual Śaivism of Kashmir. Albany: SUNY Press, 1989.
PANDEY, K.C. Abhinavagupta: an historical & philosophical study. Nova Délhi, Índia: Chaukhamba Sanskrit Studies, 2006.

2 comentários:

Valmir Brito 27 de novembro de 2013 às 03:19  

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