terça-feira, 21 de abril de 2009

A Tradição Krama


Por Fernando Liguori

UMA das tradições mais antigas que se desenvolveu na Caxemira fora a tradição Krama que floresceu entre os Sécs. VII e X d.C. A palavra krama literalmente significa fluxo, curso, progresso, passo a passo, sucessão. O termo é compreendido como um processo interior de auto-realização pelo qual o devoto descobre sua identidade com a deusa pelo fluxo (krama) dos poderes da consciência (śakti-cidrūpiṇī). Os rituais desta tradição são mantidos em segredo (rahasya-vidhy) e somente são revelados aos iniciados, embora o objetivo seja sempre estabelecer a identidade da deusa, que é o aspecto feminino do poder divino entronizado no coração de todas as criaturas. A doutrina secreta (kulārtha) desta tradição é transmitida pela guruji diretamente a seus discípulos. A transmissão do poder se dá através do maithuna, cuja liturgia envolve a mistura das secreções sexuais do homem e da mulher, que são repartidos boca a boca. Este rito é conhecido como A Boca da Yoginī.

A tradição Krama assumiu, com o tempo, um significativo papel entre as tradições de origem tântrica, tanto para os grupos śaivas como para os grupos śāktas. Com seus rituais secretos (rahasya-vidhy) direcionados ao culto da feminilidade na figura da Deusa Kālī, inauguraram uma era de autoconhecimento e transcendência espiritual baseada na espiritualidade feminina de encontro ao Absoluto.[1]

O sistema Krama tem um triplo significado: primeiro, é um sistema tântrico; segundo, é um sistema śaiva monista; terceiro, ele marca a emergência da tendência śākta na filosofia śaiva. Este sistema, portanto, se desenvolveu dentro de um complexo conceito sintético que reunia a filosofia śaiva, o esoterismo śākta e um sinóptico olhar tântrico da vida. A tradição Krama é, portanto, não apenas um sistema de filosofia pura revelada em um debate epistêmico e ontológico, mas também uma disciplina esotérica de espiritualidade que constitui uma importante fração da extensa cultura tântrica.


A tradição Krama como um Sistema Tântrico de Orientação Śākta

A tradição Krama, desde seus primórdios, refletiu uma sistemática tendência śākta no Śaivismo monista da Caxemira. Isso causou uma divisão no sistema, dividindo a tradição em duas escolas distintas. Uma compreende Śiva como o Princípio Supremo da existência; a outra coloca ênfase na adoração de Śakti, na forma de Kālī, como a Consciência Suprema.[2] Assim, todos os outros sistemas do Śaivismo da Caxemira tais como Pratyabhijñā, Kaula e Trika são de orientação śaiva; o sistema Krama é śākta.[3] O sistema Spanda é uma exceção no sentido que ele marca a transição entre essas duas ideologias. Embora seja śaiva, ao mesmo tempo possui uma inclinação natural em direção a Śakti, o aspecto dinâmico da Realidade. A importante distinção entre as escolas Spanda e Krama reside no fato de que a última é tântrica, a primeira não. Acredito que é por esta razão que Abhinavagupta, em seu Tantrāloka (TĀ), trata a tradição Krama sob o aspecto Śāktopāya como um sistema diferente de pensamento e não concorda com um tratamento distinto entre estas duas escolas, uma vez que o próprio TĀ está cheio de referências e extratos de autores da tradição Spanda.[4] O fato de a tradição Pratyabhijñā ser abordada separadamente sob o aspecto Anupāya no TĀ, ao contrario das referências a tradição Spanda, demonstrou-me que a última se aproxima da primeira em detrimento da metafísica, e não do misticismo e do esoterismo.[5] Ao contrário, Kaula e Krama, ambas sendo tântricas em origem e forma, são mais místicas do que metafísicas. Ainda, com todas as suas diferenças, elas constituem juntas o que é precisamente conhecido como monismo śaiva da Caxemira.

Uttarāmnāya: A Tradição Krama & o Âmago da Doutrina

Podemos dizer que a energia que devora Kālīkaulika se manifesta neste āmnāya[6] como Kaleśvarī na prática do Kaulācāra. É dito que esta prática contém a essência Kaula (kaulagarbha). Ela reside no Centro do Nascimento (janmādhāra). Conforme as escrituras, essa é a Suprema Tradição (paramāmnāya) transmitida de boca a ouvidos e é chamada de Kālikākulakrama. Do centro do sol (sūrya) emerge outro Sol (ravi) que é a luz interna que ilumina todo o universo. Ele é circundado pelos raios da deusa-solar Bhānavīkaulinī, também conhecida como Kaleśvarī e Kulagahvarī. Ela é os raios do Sol que brilha no centro do piso sacrificial do Grande Céu que é o Oceano de Śiva. O Grande Mantra que consiste em sessenta e quatro úteros (yoni) de Bhairava se eleva e se dissolve em sacrifício. No centro do piso do Sol (bhānavīkuṇḍa) se encontra a Roda da Dissolução que é a sua verdadeira natureza (svasvabhāva). Destruindo tanto o Ser quanto o Não-Ser, ele é o Fogo da Consciência personificada como a deusa Kulakṛṣodarī. Tudo isso é o Supremo Brahman em sua verdadeira natureza (svasvabhāva).

De acordo com o Kramastotra (K.S.), Niṣkriyānanda manifestou no mundo o néctar Kula que outrora fora proferido por uma yoginī, revelando assim a tradição Mahākālīkrama. O texto descreve uma transmissão desta doutrina a Vidyānanda. Ele praticava Yoga sob o aspecto de Siddhaśābara. Sua residência era um campo de cremação onde ele praticava Yoga à noite e onde se regozijava com a prática Kaula na companhia de Siddhas e Vīras. Ele adorava a Suprema Deidade em uma caverna ao norte de Śivapīṭha conhecida como Śrīśaila, local onde ansiava adquirir a Ação do Conhecimento (niṣkriyājñāna). Sua devoção era tão intensa que Niṣkriyānandanātha finalmente lhe transmitiu de boca a ouvidos os segredos de Kālikākrama. Estes foram o Conhecimento da Esquerda (vāmajñāna) e a Seqüência dos Sessenta e Cinco Estágios. Esta é a aurora das Doze Kālīs de Luz (Prabhākālī) no Céu da Consciência que se erguem em seqüência aniquilando e destruindo (saṃhārasaṃhārakrama), pois a deusa devora todas as coisas. Assim, Kālīkrama é o fluxo de Kula. Esta é a divina maṇḍala superior que, completamente erguida, transcende a mente como uma emergência da cognição que penetra todos os níveis de consciência e fluxos cósmicos. Então o yogī bebe o incomparável néctar da imortalidade no Supremo Céu da Consciência que se abre espontaneamente dentro dele. Esta é a Suprema Exuberância (parollāsa), a expansão (vikāsa) da consciência que desperta a Kaulinī, a Kālī de doze aspectos.

Esta é a expansão da Roda de Kālī (Kālīcakra) que é o Sol de Kula e seus Doze Raios. Assim, a seqüência do Sol (bhānavīkrama), é a vida de todo ser vivente que ilumina a mente para que ela se erga no Céu que está além do Céu, intensamente radiante e flamejando ardentemente a imanente Kula e o transcendente Akula. Isso é chamado de Kulākulāmnāya. As doze deusas nesta tradição são identificadas pelos doze poderes simbolizados pelas doze vogais e elas são chamadas de Mālinī, a deusa identificada com a seqüência da exerção (udyogakramamālinī). O yogī que está verdadeiramente estabelecido em sua verdadeira natureza contempla a grandiosidade deste supremo mistério (mahākrama), a tradição Kālīkrama transmitida por Niṣkriyānandanātha.

Os nomes dos Doze Sóis que aparecem como aspectos das Kālīs de Luz (Prabhākālī) são mantidos em segredo nos Kaulikāgamas. Rastreando as escrituras temos os seguintes nomes: Kālī da Criação (Sṛṣṭikālī), Kālī da Persistência (Sthitikālī), Kālī da Destruição (Saṃhārakālī), Kālī da Paixão (Raktakālī), Kālī Benevolente (Sukālī), Kālī do Controle (Yamakālī), Kālī da Morte (Mṛtyukālī), Kālī Auspiciosa (Bhadrakālī), Kālī do Sol Supremo (Mahāmārtaṇḍakālī), Terrível Kālī (Rudrakālī) e a Grande Kālī (mahākālī). Kumārī[7] é adorada no centro do círculo destes doze poderes.

Uma análise segundo as escrituras

Sob a luz das escrituras, a partir deste ponto vamos fazer uma análise e interpretação deste sistema, sempre na tentativa de iluminar as lacunas que a história deixou. Não é fácil, pois as fontes e interpretações são muitas; todavia, novos pesquisadores nos mostram uma luz no fim do túnel onde podemos novamente nos conectar ao fio que irá tecer uma nova compreensão.

A maneira pelo qual este āmnāya é descrito no Ciñcinīmatasārasamuccaya (CMSS) é de interesse não apenas ao historiador dos Tantras da tradição Kaula mas também ao estudante do Śaivismo da Caxemira, particularmente aquela parte que os acadêmicos modernos chamam de sistema Krama, de outra maneira conhecido como Kramaśāna, Kramadarśana ou Kramanaya nas fontes caximirianas assim como nos Tantras.[8] O foco principal da espiritualidade da tradição Uttarāmnāya é apresentado nesta escritura como a experiência da Ascensão da Seqüência de Kālīs (Kālīkramodaya).[9] A maneira como ocorre esta ascensão assim como a ordem e os nomes das Kālīs no texto, são virtualmente os mesmos que encontramos nas passagens agâmicas citadas por Jayaratha em seu comentário sobre a exposição de Abhinavagupta sobre a seqüência das Kālīs (Kālīkrama) em Anākhyacakra.[10] Abhinavagupta considerava este o principal ensinamento do sistema Krama, o qual ele sintetizou como Anuttaratrikakulakrama (genericamente simplificado como Trika), do qual seu Tantrāloka é um compreensivo manual de procedimentos litúrgicos da tradição Kaula.[11]

Acadêmicos modernos do Śaivismo não-dualista da Caxemira genericamente distinguem entre Kula e Krama como se elas fossem duas escolas separadas ou, utilizando a expressão mais usual, sistemas. Sob a luz de novas evidências tanto no campo das recentes descobertas agâmicas quanto os argumentos dos autores caximirianos e suas referências provindas de escrituras originais, essa distinção é definitivamente falsa. O sistema Krama é a tradição Kaula em todos os aspectos.

No Kramastotra, a primeira das doze Kālīs é descrita como uma densa onda de bem-aventurança que se ergue do oceano de Kula e emerge novamente no abismo de Kula.[12] Finalmente, a última Kālī se merge em Akula,[13] que é representado genericamente como a Morada Suprema da Deusa.[14] Neste sentido, Śakti como Kula se funde com Śiva como Akula, tendo emergido de sua infinita potencialidade e atravessado todo ciclo de manifestação, que nada mais é do que a expressão de sua própria natureza.[15] Assim, Kula e Akula constituem a suprema realidade Kaula (paramakaula) e encerram toda manifestação como a união inescrutável da imanência que conduz a transcendência e a transcendência que conduz a imanência. Isso é pura doutrina Kaula.

Similarmente, o ritual e a doutrina Krama são Kaula em essência. Que o ritual Krama requer em determinadas circunstâncias a oferenda e o consumo de carne, vinho e intercurso sexual ritualizado é um fato bem conhecido aos acadêmicos e demais estudiosos do Śaivismo da Caxemira.[16] Na exposição de Abhinavagupta do ritual Kaula no capítulo 29 do Tantrāloka, ele se refere a inúmeras obras Krama, assim como seu maior comentador, Jayaratha. Algumas delas são: Kramapūjana, Kramarahasya, Devīpañcaśatikā, Kālīkula, Mādhavakula, Śrīkulakramodaya e Tantrarājabhaṭṭāraka. O Mādhavakula, que faz parte do Tantrarājabhaṭṭāraka – uma obra considerada pelos escritores da Caxemira como a maior autoridade acerca da tradição Krama –, se refere a um ritual denominado Kulapūjana. Abhinavagupta se refere ao Kramapūjana como um Tantra de autoridade onde o Senhor Supremo explica o segredo central do ritual Kaula, notadamente, a adoração dos Yuganāthas e suas consortes. Esta é uma liturgia que marca o ponto de partida preliminar de todos os rituais Kaula. Assim vemos que Abhinavagupta toma o texto Krama como uma referência de peso no início de sua exposição do ritual Kaula.

Jñānanetranātha, também conhecido como Śivānanda, é venerado pelos autores caximirianos da tradição Krama como o fundador da tradição da qual eles descendem diretamente.[17] Ele trouxe a terra uma obra Krama chamada Yonigahvaratantra onde lista os nomes dos Yuganāthas e suas consortes, proclamando que eles ensinaram o segredo do caminho Kaula (kulamārga). Não é de se surpreender, portanto, que a tradição Krama é também chamada de Kālīkula ou Kramakula nas fontes agâmicas referidas por inúmeros autores caximirianos. Assim, embora a tradição Krama apareça como uma escola independente (com muitas subdivisões em seu escopo), ela não pode ser distinguida da tradição Kaula, mas de fato uma de suas ramificações.[18]

Notas

[1] Alguns autores discordam deste ponto de vista alegando ser a doutrina da escola Krama uma tradição de esquerda, marcada por elementos negros e que, portanto, é uma escola decadente, assim como a tradição Kaula, uma escola que inclui a Krama, como veremos no texto.

[2] Da mesma maneira, ambos Kaula e Tripurā são conhecidos como sistemas diferentes, mas o fato é que ambos se complementam, com a diferença de que enquanto o sistema Tripurā é de inclinação śākta, a tradição Kaula é de inclinação śaiva.

[3] Aqui é necessário conectar esta ênfase no aspecto śākta com a atividade espiritual que subjaz as preceptoras femininas. A importância do papel exercido pelas instrutoras femininas pode ser encontrada no fato de que este sistema é dito ter sido originado da Boca da Yoginī.

[4] Estranho quanto possa parecer, é importante notar que Abhinavagupta, quem escreveu tão profundamente e copiosamente sobre quase todos os temas relativos ao Śaivismo da Caxemira, nunca escreveu um único trabalho sobre a tradição Spanda. Kṣemarāja comenta o assunto em Spandanirṇaya, p. 77 (conclusão do verso 2).

[5] Incorporando a tradição Pratyabhijñā como uma parte inalienável do TĀ, Abhinavagupta demonstrava estar intimamente influenciado pelo enorme potencial metafísico desta escola. Isso porque a noção de Pratyabhijñā (reconhecimento) é o aspecto mais significante e singelo que constitui todos os sistemas śaivas monistas da Caxemira.

[6] O termo āmnāya é usado para denotar grupos distintos de escrituras que se encontram dentro dos Kulāgamas,* cada uma consistindo de Tantras que compartilham uma afiliação comum a uma única tradição e é dito serem originárias de uma direção fixa. O melhor exemplo aqui seria Uttarāmnāya, i.e. a tradição do norte.

[*] Os Kaulatantras pertencem a uma extensiva e importante categoria de escrituras agâmicas que são consideradas constituírem um corpo doutrinário genericamente identificado como Kulāgama.

[7] Existe uma conexão entre este tipo de adoração e o kumārīpūjā, um procedimento de adoração ritual inserido na tradição Paścimāmnāya, i.e. o culto à Deusa Kubjikā. Em meu artigo O vāmācāra & sua conduta anti-bramânica, eu disse que a kulastrī não significa dona de casa, como propõem muitos acadêmicos; ao contrário, é um título dado a algumas mulheres dentro da Tradição Kaula segundo sua classificação como veṣya. A mulher que recebe este título é uma sacerdotisa especialmente escolhida para atuar como o Princípio Feminino nos rituais de adoração à Deusa (pañcamakāra, cakrapūjā ou rahaṣyapūjā) onde a utilização do kulapuṣpa (sangue menstrual) é essencial. Todas as mulheres simbolizam a Śakti, todavia, uma vez que a kumārī (virgem) é sua forma mais elevada, uma das maneiras de se adorar a Grande Deusa é pela defloração ritual da virgem no kumārīpūjā. Este procedimento reside no seio da tradição Paścimāmnāya.** O Kubjikāmatatantra (XVI: 23-42) descreve um ritual onde uma jovem de dezesseis anos é adorada pelo olhar (dṛṣṭi), focando a meditação (dhyāna) em cada parte de seu corpo enquanto há a recitação mântrica sem a influência da paixão sensorial. É dito que este ritual tem grande mérito se a jovem estiver no período de catamênio e à Deusa for visualizada residindo em sua yoni (vulva).

[**] A defloração ritualística ocorre somente em determinadas ocasiões. Em outras palavras, nem sempre a realização do kumārīpūjā envolve este tipo de procedimento.

[8] O termo Kramadarśana não é comum nos Tantras. Eles geralmente se referem a seu sistema doutrinal e ritualístico como Kramanaya, Uttarāmnāya, Kramaśāsana, Atinaya, Mahārtha, Mahārthakrama, Mahākrama, Kālīkula, Kālīkulakrama, Kālīnaya ou Devīnaya.

[9] CMSS, fl. 23b.

[10] Jayaratha se refere a um número de autoridades em seu comentário sobre o TĀ (4/148-170) onde Abhinavagupta expõe a ordem das doze Kālīs que constituem o Saṃviccakra. Entre eles estão Devīpañcaśatikā, Śrīsārdhaśatika e o Kramasadbhāva que foi editado a partir de manuscritos nepaleses por G. S. Sanderson, mas infelizmente ainda não foram publicados. O Kramasadbhāva prescreve a adoração de dezessete Kālīs no Anākhyacakra, mas outras fontes usualmente apontam treze (a parte do Kramastotra onde elas são doze). No Śrīsārdhaśatika (citado no TĀ, Vol. III, p. 161) as treze Kālīs são listadas na seguinte ordem: 1. Sṛṣṭi; 2. Sthiti; 3. Saṃhāra; 4. Rakta; 5. Svakālī; 6. Yamakālī; 7. Mṛtyu; 8. Rudra; 9. Paramārka; 10. Mārtaṇḍa; 11. Kālāgnirudra; 12. Mahākālī e 13. Mahābhairavavacaṇḍograghorakālī que se encontra no centro. O Tantrarājabhaṭṭārka (citado no TĀ, Vol. III, p. 189) também lista treze Kālīs. A oitava Kālī é chamada de Bhadrakālī, assim como no CMSS, enquanto que o nome da décima terceira Kālī, Mahābhairavakālī, é uma variação de Mahābhairavavacaṇḍograghorakālī que é comumente aceita por este nome. A ordem das Kālīs no Devīpañcaśatikā é citada por Jayaratha da seguinte maneira: 1. Sṛṣṭi; 2. Rakta; 3. Sthiti; 4. Yama; 5. Saṃhāra; 6. Mṛtyu; 7. Rudra; 8. Mārtaṇḍa; 9. Paramārka; 10. Kālāgnirudra; 11. Mahākālī; 12. Mahābhairavavacaṇḍograghorakālī e 13. Sukālī.

A ordem das Kālīs que Abhinavagupta apresenta segue o Kramastotra, uma obra sobre a qual ele escreveu um comentário chamado Kramakeli. Assim se segue no TĀ (4/148-170): 1. Sṛṣṭi; 2. Rakta; 3. Sthitināśa; 4. Yama; 5. Saṃhāra; 6. Mṛtyu; 7. Bhadra; 8. Mārtaṇḍa; 9. Paramārka; 10. Kālāgnirudra; 11. Mahākālakālī; 12. Mahābhairavavacaṇḍograghorakālī.

Abhinavagupta rejeita a seqüência de doze Kālīs e deixa vazio o espaço no centro do ciclo rotativo de Kālīs, onde a décima terceira era usualmente alocada. Assim, ele concorda com o Kramastotra em oposição ao modelo padrão dos Tantras que alocam Mahābhairavavacaṇḍograghorakālī como a décima terceira Kālī (veja TĀ, Vol. III, p. 189). Seguindo o Kramastotra ele elimina Sukālī que geralmente é a quinta Kālī na seqüência. Jayaratha rejeita o fato dizendo que, seguindo as instruções do Pañcaśatikā, isso não é correto (idem). Contudo, segundo este texto, Mahābhairavakālī era a décima terceira Kālī na seqüência, o que não bate com nenhuma outra escritura. Portanto é provável que Jayaratha tenha alterado a ordem original das Kālīs para se ajustar ao Kramastotra. Jayaratha ainda cita outros Tantras que eliminam Sukālī. Assim, Paramadevī, que é alocada no centro das doze Kālīs de acordo com o CMSS, é Mahābhairavavacaṇḍograghorakālī. Analisando as escrituras citadas, existem dúvidas se as Kālīs citadas no CMSS são as mesmas da tradição Kālīkrama como apresentadas na maioria dos Āgamas da escola Krama predominantes no tempo de Abhinavagupta.

[11] santi paddhatayaś citrāḥ srotobhedeṣu bhūyasā
anuttaraṣaḍhardhārthakrame tvekāpi nekṣyate (TĀ, 1/14)

A tradução de Gnoli deste verso para o italiano é lida em português como se segue: Muitos são os manuais utilizados por várias correntes. Mas para escola onde não há nada superior, pois assim é Trika e a Krama, não há, contudo, nenhum.

Em uma nota de rodapé ele escreveu que a frase – para escola onde não há nada superior (anuttara) – é, muito provavelmente, uma referência a escola Kaula. Ele adiciona, contudo, que a primeira parte da frase composta (i.e. anuttaraṣaḍhardhārtha) pode também ser traduzida de forma que signifique o método concernente a Trika, isto é, a escola onde não há nada superior. Nos parece que esta tradução é mais satisfatória. A tradução original implica que a tradição Kaula seja um sistema separado que se diferencia substancialmente das tradições Krama e Trika, possuindo assim uma identidade similar, contudo particular. Mas nós vemos que a tradição Kaula, nas obras de Abhinavagupta, abrange tanto as escolas Krama e Trika, assim como nas fontes agâmicas originais. Em um sentido, o termo Kaula (ou Kula) se refere a um tipo de doutrina e um padrão litúrgico. Este uso do termo é melhor exemplificado por sua posição contrastada no TĀ onde se diferencia o método ou liturgia Kula (kulaprakriyā) do método tântrico (tantraprakriyā). O primeiro denota o ritual Trika e Krama Kaula em geral; o segundo denota todo tipo de ritual tântrico que está livre de elementos Kaula, tais como a utilização da carne, vinho e o intercurso ritualístico. Novamente, Kula denota um tipo de tradição tântrica e existem, como temos enfatizado em vários artigos, inúmeras escolas Kaula. Portanto, a expressão anuttaraṣaḍhardhārthakrame é melhor não ser tomada como uma conjunção, mas lida da maneira que signifique a liturgia (krama) da escola Anuttaratrikakula (artha). Jayaratha também toma a palavra Krama aqui como modelo para liturgia (prakriyā) e não como referência a escola Krama (Anuttaratrikārthaprakriyālakṣaṇam, TĀ, Vol. I, p. 33). Anuttaratrikakula é a forma mais elevada de Trika. Ela é também conhecida como Anuttarāmṛtakula, a qual Abhinavagupta invoca no primeiro verso do Tantrāloka e que Jayaratha diz ser o supremo princípio que contém, e ainda está além, da tríade (Trika) Parā, Parāparā e Aparā (veja o comentário no Tantrāloka, 1/1).

[12] kaulārṇavānandaghanormirūpām unmeṣameṣobhayabhājam antaḥ
Nilīyate nīlakulālaye yā tāṃ sṛṣṭikālīṃ namāmi (TĀ, Vol. III, p. 158)

[13] TĀ, 4/170. Para natureza de Akula veja TĀ, 3/67.

[14] Veja TĀ, Vol. III, p. 185.

[15] Em todas as divisões e subdivisões da escola Kaula, Śiva aparece como o princípio transcendental supremo. Ele é o ultimo estágio de todos os estados de consciência, atividades ritualísticas e suas contra partes macrocósmicas, estágios de manifestação e retração. Assim como na tradição Paścimāmnāya, Śiva é chamado de Śambhu no Kramasadbhāva onde Ele é identificado com Bhāsā – o princípio da pura iluminação, equivalente a expansão gloriosa da luz da consciência (prakāśavibhavasphītham) citada no Kramastotra como a morada suprema de Kālī (TĀ, Vol. III, p. 185). No Kramasadbhāva, Anākhya é a Śakti que sucede a criação, manutenção e destruição.

jñānaṃ sṛṣṭiṃ vijānīyāt sthitir mantraḥ prakīrtaḥ
saṃhāraṃ tu mahākālamelāpaṃ paramaṃ viduḥ
anākhyaṃ śaktirūpaṃ tu bhāsākhyaṃ śambhurūpakam (MM, p. 94)

[16] Veja Abhinavagupta: An Historical & Philosophical Study, por Dr. K.C. Pandey. Ele se refere a estas práticas nas páginas 491-493, seção intitulada The problem of moral turpitude in Krama ritual.

[17] Jñānanetra recebeu, originalmente, sua transmissão espiritual da deusa Maṅgalā (ou Makāradevī) em Uttarapīṭha, também conhecida como Oṅkārapīṭha e identificada com Oḍḍiyāna no qual o campo de cremação chamado Karavīra estava localizado. Embora Jñānanetra seja referido como o mestre que revelou a doutrina Krama na terra (avatārakanātha, TĀ, Vol. III, p. 195), ele foi apenas o fundador de uma das escolas da tradição Krama associada à Uttarapīṭha.

[18] Goudriaan (Hindu Tantric and Śākta Literature, p. 50) coloca que a posição exata do sistema Krama dentro da tradição caximiriana e sua relação com [o sistema] Kula é, contudo, difícil de acessar. Quando Goudriaan discute a escola Krama, na maioria das vezes, faz referência ao excelente estudo de N. Rastogi, The Krama Tantricism of Kashmir. Ele enfatiza, contudo, que Rastogi coloca muita ênfase na escola Krama como um sistema separado. Nós estamos inclinados a pensar no método de iniciação ou auto-realização que possa ser seguido pelos adeptos do ponto de vista Kula. A história da tradição Krama, sua estrutura e relação com outras tradições tântricas ainda é matéria de estudo profundo nos Āgamas da tradição.

Bibliografia

Textos Sânscritos

Ciñcinīmatasārasamuccaya (CMSS). Edited by Mark Dyczkowski. Muktabodha, Vol. 132 of the KSTS Series, 2006.
Kramastotra (K.S.). Autor desconhecido (mas possivelmente por Siddhanātha) com tradução para o Hindi por Rājānaka Lakṣamaṇa, Guptaganga, Sringar, 1956.
Kramastotra (K.S.) de Abhinavagupta. Publicado no Apêndice C (p.948-950) em: Abhinavagupta: An Historical & Philosophical Study, Dr. K.C. Pandey, segunda edição, Chowkhamba, 1963.
Mahārthamañjarī (MM) by Maheśvarānada, edited by Vrajavallabha Dviveda. Yogatantragranthamālā No. 5, Vārāṇasī, 1972.
Spandanirṇaya (Sp.N) A Commentary by Kṣemarāja on Sp.K, edited with Preface, Introdution and English translation by M.S. Kaul. K.S.S. No. XLII, 1925.
Tantrāloka (TĀ) by Abhinavagupta and commentary by Jayaratha. Edited by Mukunda Rāma Śāstrī, Vol. I-XII, KSTS Series, 1918-38.

Livros

BHATTACHARYYA, B. Śaivism in the Phallic Word (Vol. II). Nova Délhi, Índia: Munshiram Manoharlal, 1975.
DUPUCHE, John R. Abhinavagupta’s the Kula Ritual as Elaborated in Chapter 29 of the Tantrāloka. Nova Délhi: Motilal Banarsidass Publishers, 2003.
DYCZKOWSKI, Mark S.G. A Journey in the World of the Tantras. Indica Books. Nova Délhi, 2004.
____________. The Aphorisms of Śiva. State University of New York Press, Albany, New York, l992.
____________. The Canon of the Śaivāgama and the Kubjikā Tantras of the Western Tradition. State University of New York Press, Albany, New York, 1987.
____________. The Stanzas on Vibration. State University of New York Press, Albany, New York, l992.
____________. The Doctrine of Vibration: An Analysis of the Doctrines and Practices of Khashimir Śaivism. State University of New York Press, Albany, New York, l987.
GNOLI, R. Luce Delle Sacre Scriture. Torino: Classici Utet, 1972. (Tradução em italiano do Tantrāloka de Abhinavagupta).
GOUDRIAAN, teun e GUPTA, Sanyukta. Hindu Tantric and Śākta Literature. Wiesbaden: Otto Harrasowitz, 1981.
MARJANOVIC, Boris. Abhinavagupta’s Commentary on the BhagavadGītā: Gītārtha Saṁgraha (trans by). Varanasi India: Indica Books, 2004.
MISHRA, Kamalakar. Kashmir Śaivism, the Central Pholosophi of Tantrism. Nova Délhi: Sri Satguru Publications (Indian Books centre), 1999.
MUKTANANDA, Swami. Encontrei a vida. Petrópolis: Vozes, 1994.
MULLER-Ortega, Paul Eduardo. The Triadic Heart of Śiva: Kaula Tantricism of Abhinavagupta in the Non-Dual Śaivism of Kashmir. Nova Iorque: State University of New Yorke Press, 1989.
PANDEY, K.C. Abhinavagupta: An Historical & Philosophical Study. Nova Délhi, Índia: Chaukhamba Sanskrit Studies, 2006.
RASTOGI, N. The Krama Tantricism of Kashmir. Nova Délhi: Motilal Banarsidass, 1979.
SATI, Tārānanda. Tantra Kaula: A Arte do Ritual e da Magia. São Paulo: Madras, 2006.
SHANKARĀNANDA, Swami. The Yoga of Kashmir Shaivism. Nova Délhi: Motilal Banarsidass, 2006.
SINGH, Jaideva. Śiva Sūtra: The Yoga of Supreme Identity. Nova Délhi: Motilal Banarsidass Publishers, 1979.
____________. Spanda-Kārikās: The Divine Creative Pulsation. Nova Délhi: Motilal Banarsidass Publishers, 2005.
TAGARE, G.V. Śaivism, Some Glimpses. Nova Délhi: D.K. Printword Ltd, 2001.


0 comentários:

Postar um comentário

LEIA COM ATENÇÃO

O objetivo de se disponibilizar ao leitor a condição de comentários não tem a finalidade de se gerar um fórum de perguntas e respostas. Este blogger é mantido por um esforço pessoal, assim, muitas vezes é impossível a resposta imediata.

Todos os comentários são moderados. Atitudes ofensivas, contrárias aos princípios da Tradição Arcana, não serão publicadas.

Continue por favor...

  ©Template by Dicas Blogger.

TOPO