terça-feira, 13 de agosto de 2013

O Ocidente está sendo enganado

 
Uma visita a qualquer «studio» de yoga é suficiente para informar mesmo ao mais leigo dos praticantes de yoga que aquilo que tem sido praticado -- e estudado, quando o lugar é considerado «uma escola séria» -- não tem relação com o que se fazia na Índia, na Idade Média. Até mesmo os instrutores mais engajados nos sistemas modernos admitem isso. Há, de fato, uma distância gigantesca separando os sistemas modernos daquilo que um Ramana Maharshi, um Nisargadatta Maharaj ou um Shivabalayogi chamariam de yoga.

Nem seria necessário apelar a esses três sábios. Há centenas, talvez milhares de livros, que supostamente falam de yoga. Todos esses livros fazem alguma menção aos Sutras de Patañjali e às lições dos hathayogis, como Matsyendranath e Gorakhshanath. Os autores desses livros não negam que o objetivo do yoga é transcendente, não imanente. Prestam reverências à tradição. Fazem a lição de casa.

Porém, uma vez concluídos os prefácios, logo começa o festival de bobagens.

Um dos livros mais populares no Ocidente, «Light on Yoga», do conhecido prof. B. K. S. Iyengar, segue exatamente essa linha. O capítulo introdutório é correto em sua maioria, mas nesse mesmo capítulo há a justificativa de Iyengar para a apresentação não de 20 ou 30 posturas corporais, mas de 200 posturas, com mais de 600 fotos. Diz ele na página 27:

Minha experiência levou-me a concluir que para um homem ou mulher comuns, em qualquer comunidade do mundo, a maneira de atingir a paz de espírito é trabalhar com determinação em dois dos oito estágios da ioga citados por Patañjali, a saber, asana e pranayama.
Com efeito, o método Iyengar -- conhecido por muitos como Iyengar Yoga -- resume-se à prática corporal com foco terapêutico. Excelente para melhorar a postura e atenuar problemas de coluna, mas que não produziu um único iluminado desde que o método foi criado.

Situação semelhante é a do Ashtanga Vinyasa Yoga, que alguns praticantes chegam a considerar uma «tradição», já que o nome faz referência à sistematização em oito partes, tal como foi proposta por Patañjali nos Sutras. Na Internet há dezenas de imagens de aulas coletivas e muitas delas são subscritas com uma legenda onde se lê: «como manda a tradição».

Quando procuramos conhecer a história do método de Pattabhi Jois e o que é a «tradição» que ele propõe, vemos que se trata de algo fortemente inspirado no trabalho de seu professor, Krishnamacharya. Este, por sua vez, estabeleceu na verdade não um sistema de yoga, mas de educação física, mormente voltado para crianças e jovens (como explica o próprio Iyengar, que também foi aluno de Krishnamacharya, nesta entrevista). Se remontarmos à época em que Krishnamacharya estabeleceu sua criação (final da década de 1920), veremos que seus sistema foi inicialmente voltado para uma elite indiana que àquela altura já havia sido influenciada por duas vertentes tipicamente européias: a educação física e, principalmente, o higienismo. A yogaterapia -- seja como sistema prático-disciplinar, seja como crença nos benefícios terapêuticos de técnicas inspiradas no hathayoga -- é fruto dessas duas vertentes.

Praticamente tudo o que se fez sob o nome de «yoga» no Ocidente desde os anos 50 nasceu sob a influência desses três indivíduos -- Iyengar, Jois e Krishnamacharya. O livro de Iyengar, lançado em 1966, pode ser considerado um divisor de águas neste sentido. A riqueza gráfica, a enorme quantidade de posturas físicas e o próprio tamanho do livro, com mais de 500 páginas, constituíam argumentos bastante sólidos sobre a veracidade das lições que ali eram transmitida.

Mas voltemos ao início: que relação há entre as 200 posturas corporais do livro do prof. Iyengar e, por exemplo, o 50º verso do primeiro capítulo dos Yoga Sutras?

A prática do samadhi continuada, persistente e somada aos desapego cultiva um hábito mental que ainda é um samskara, porém o samskara mais elevado de todos, que suplanta e interrompe todos os demais.
Se formos seguir à risca o que o próprio Iyengar ensinou em seu livro e que é repetido ad nauseam pelos instrutores de seu método, não há relação. Samadhi está fora do yoga de acordo com o método proposto pelo prof. Iyengar. Logo, não faz sentido apelar para os Sutras para explicar o que quer que seja nesse método.

Suponhamos que você seja daqueles instrutores que não conhecem apenas o método Iyengar, mas também o Ashtanga Vinyasa Yoga, o Yoga Integral, o Hatha Yoga Contemporâneo, o Yoga Restaurativo, o Kundalini Yoga e até mesmo o Acro Yoga; suponhamos que você estuda Vedanta com Glória Arieira, senta na primeira fila quando Swami Dayananda vem ao Brasil, conhece Ayurveda, Jyotish e Vaastu Shastra, guarda com carinho todos os certificados dos inúmeros cursos de formação que fez (menos o de Swasthya Yoga), mas, no fim das contas, quer apenas divulgar e dividir suas descobertas com outras pessoas e difundir uma prática que você mesmo desenvolveu, com profunda sinceridade e reverência para com a tradição. É um peso excessivo, mas que é exposto como troféu nas seções «Sobre» dos sites de escolas de yoga. O pensador americano Thoreau, na singeleza da cabana que ele mesmo construiu em meados do séc. XIX, era muito mais yogi do que essa gente. «Simplifique, simplifique», dizia ele.

Leio, por exemplo, um artigo que é apresentado com a expressão «para o bem de todos aqueles que buscam o yoga autêntico». O artigo consiste em defender a longa permanência nas posturas com o propósito de conquistar os «benefícios do yoga». O título do artigo é Yoga não é ginástica. Nas palavras do autor (grifos meus):

Ora, as asanas -- e lá está sua diferença essencial com relação à ginástica e aos esportes --, visam mais aos órgãos do que os músculos. Portanto, em virtude da regra do tudo ou nada, se eu não permanecer alguns segundos em imobilidade, não se produz qualquer reação da parte de um órgão seja ele qual for. Mas, depois de uma permanência de alguns segundos, cada segundo de imobilidade suplementar redunda em benefício certo, portanto intensifica e/ou prolonga a reação! Assim, quanto mais longamente se permanecer imóvel, mais profundos e duráveis serão os efeitos benéficos das posturas.
Santa paçoquinha... Quer dizer que o yoga não é ginástica porque visa mais os órgãos do que os músculos? O que há de yoga autêntico nisso? Basta ler um (01) shastra para perceber a enorme bobagem diante da qual estamos.

Quando repito estas críticas -- quem acompanha meu site já deve ter percebido que este é um tema recorrente --, algumas pessoas respondem com o argumento de que não há problemas desde que o resultado seja bom. Quando insisto um pouco mais, essas pessoas conseguem perceber que esse argumento é um desvio retórico, não uma resposta à crítica, e acabam se sentindo na obrigação de justificar aquilo que elas fazem e que, em muitos casos, ensinam -- o que, para um observador atento, é uma admissão de culpa, algo como:

Ok, admito, isso não é o yoga autêntico. Sim, eu minto, mas estou fazendo bem às pessoas.
Entre as justificativas mais comuns há aquela que diz mais ou menos assim: «Se nós [instrutores de yoga] não oferecermos ginástica e bem-estar, as pessoas não virão e jamais serão atraídas para o yoga autêntico». De fato, o yoga, sobretudo em sua forma mais conhecida, o hathayoga, pode ser asqueroso e desagradável. Há no Hatha Yoga Pradipika descrições de técnicas em que o indivíduo deve cobrir o corpo com cinzas mortuárias e outras tantas que sinalizam relações bastante incomuns com os fluidos corporais. A própria noção tradicional de tapasya está a léguas de distância das práticas modernas, em que essa noção é entendida como a quantidade de suor no tapete e como uma espécie de disciplina militar na realização de técnicas corporais.

Considere, por exemplo, um aluno que leu sobre yoga num site, livro ou revista. Tudo que ele vê é cuidado corporal, bem-estar e, no máximo, uma menção muito discreta às questões de espiritualidade. Se ele chegar a uma escola e deparar-se com suor e cinzas, vai sair correndo. Ele só se sentirá impelido a procurar o yoga se quiser algo parecido com o que ele viu em algum lugar. E o que ele vê? Todo material publicado sobre o yoga é ricamente ilustrado com imagens magníficas de pessoas realizando posturas corporais. O que nenhum professor explica é que, se a pessoa foi impelida por uma imagem, ela já apontou numa direção totalmente contrária ao yoga. A própria espiritualidade, quando abordada de forma aberta numa aula, vem sempre adornada com as cores do combate à depressão e de outros resultados psicológicos e terapêuticos. Não por coincidência tantos livros «de yoga» são colocados nas seções de auto-ajuda.

Você mantém o recém-chegado a uma distância segura do dark side do yoga, passa meses, talvez anos ensinando vinyasa, faz a pessoa sentir-se bem, eleva sua auto-estima, ajuda a curar sua escoliose, ela até passa a transar melhor. E o tal yoga autêntico nunca vem.

Se você atrai uma pessoa e a torna sua aluna graças à propaganda dos benefícios corporais, a associação entre yoga e benefício corporal já foi estabelecida e consolidada e tudo o que ela procurará no yoga será o benefício corporal. Será impossível a partir daí fazê-la compreender que o yoga não é isso. Também será impossível escapar do discurso de auto-justificação. Cedo ou tarde você será pego expelindo pérolas como «asana visa mais os órgãos do que os músculos», que é uma tentativa comovente de consertar a cagada inicial, mas que só piora a situação.

Daí para comprar uma assinatura da Yoga Journal ou tornar-se um de seus colunistas é um pulo.

O Ocidente acostumou-se com essas coisas, acostumou-se a ser enganado e -- sim, sim -- aprendeu a enganar. Não se envergonha mais de colocar «power» ou «flow» ao lado do termo «yoga» -- tanto que hoje há termos bem piores pintados com o verniz yogi. O Ocidente vem sendo sistematicamente enganado porque não admite que comprou gato por lebre umas décadas atrás. Acostumou-se tanto com a idéia de que yoga é saúde corporal e bem-estar que não consegue mais sair dessa gaiola.

Seria leviano atribuir toda a culpa disso aos três indivíduos que citei no início deste texto, mas poderíamos dizer que o Ocidente soube recebê-los de braços, mentes e bolsos abertos e continua assim, como se os três indivíduos estivessem no auge da propagação de suas respectivas franquias. Só que não estão. Por incrível que pareça, somos todos livres para buscar

*

Nota:

Enquanto escrevia este texto, antes mesmo de finalizá-lo, recortei um pequeno trecho e o publiquei em minha página no Facebook. Poucas horas depois notei que havia uma pessoa a menos na lista de «likes». É difícil crer que foi coincidência, ainda mais quando me lembro das inúmeras experiências que tive na rede social fazendo críticas como as que expus neste artigo: não há espaço para críticas ou discussões genuínas no yoga; jamais fui refutado, mas jamais fui bem recebido quando expus estas idéias.

Obviamente não me preocupo com a quantidade de leitores que tenho. O que realmente preocupa é perceber que há cada vez menos espaço para abordar certos temas.A tradição que começou com a busca pelo autoconhecimento através da auto-observação e do despojamento das inúmeras camadas que o ego produz e acumula -- quem diria -- foi convertida em performance pop e desenvolveu seus próprios tabus.

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