sábado, 28 de dezembro de 2013

Os Caminhos de Nivṛtti & Pravṛtti



Por Fernando Liguori

Na Índia, tradicionalmente, podemos encontrar dois caminhos divergentes e aparentemente contraditórios desde o início da história daquele país. Um é o caminho da renúncia (nivṛtti) e o outro é o caminho do envolvimento com o mundo (pravṛtti). O primeiro é o caminho do renunciante (saṃnyāsin) e o segundo o caminho do chefe de família (gṛhastha).1 Estas duas tradições culturais têm defensores ardorosos e seguidores sinceros. O significado do estilo de vida tântrico é que ele amalgama ou sintetiza os dois caminhos, assimilando os méritos de ambos e ao mesmo tempo descartando seus aspectos negativos. Esta síntese de duas grandes correntes – embora mutualmente divergentes – em uma é um evento de significado importante e especial na história cultural da Índia.

Na mente indiana sempre existiu uma fascinação pela auto-negação e pela renúncia. Um renunciante é tratado com reverência pelo povo indiano e tido na mais alta estima pela sociedade. O monge budista, o asceta jaina ou o saṃnyāsi vedantin, que encarna a renúncia e auto-abnegação é tido como o exemplo ideal de pessoa. Mas uma análise profunda deste fenômeno revela que a negação (nivṛtti) não é tão saudável para o indivíduo ou a sociedade. Por um lado, a vida de auto-negação cria problemas psicológicos e obstrui o processo de integração da personalidade, por outro, cria um efeito negativo nos empreendimentos de reforma na própria sociedade.

Mas este caminho possui seus méritos também. Ele auxilia na busca e no alcance de níveis elevados de consciência na vida espiritual. A menos que o inferior seja negado, o superior não pode ser alcançado. A fim de assimilar e sintetizar o inferior é necessário ascender aos níveis superiores. Neste sentido, a negação é tanto uma lei para uma vida saudável como afirmação também o é.

Ao contrário do ideal de renúncia, o envolvimento com as atividades do mundo é um ideal de afirmação da vida e está, portanto, livre dos aspectos negativos mencionados acima sobre o caminho da renúncia. Este caminho de afirmação possui todas as possibilidades para se prover a completude em todos os aspectos da vida, seja em nível individual ou social. Mas, assim como a renúncia, o caminho do envolvimento com o mundo também possui suas desvantagens, embora sejam de uma natureza distinta. O envolvimento, se for um meio de vida puramente materialista, sem nenhum elemento espiritual, limita as pessoas em um nível muito inferior e animalesco; alimenta o caos e o desassossego no indivíduo e na sociedade.

A renúncia pode ser chamada de a vida do espírito e o envolvimento a vida da matéria. A renúncia também pode ser chamada de aquilo que é bom enquanto que o envolvimento de aquilo que é prazeroso. O que é necessário para uma vida saudável, seja individual ou social, é a síntese destes dois caminhos. Um sem o outro não é apenas incompleto, mas um veículo veloz para problemas sérios. O estilo de vida tântrico é a resposta para isso. É um estilo de vida essencialmente espiritual, mas com a vida material realizada como uma expressão livre do espírito. A espiritualidade tântrica inclui a materialidade. O Tantra apresenta um estilo de vida em que o profano se torna sagrado e a vida material se torna espiritual. A distinção entre o profano e o sagrado é completamente extinguida. Neste estilo de vida proporcionado pelo Tantra, prazer, alegria e satisfação (bhoga) se torna yoga, quer dizer, o vício se torna a virtude ou, em outras palavras, o mundo que cria a servidão, o cativeiro e a dependência se torna o meio de liberação.2

Assim, o estilo de vida do Tantra é uma síntese feliz e bem sucedida destas duas tendências opostas dentro da cultura indiana e embora seja muito forte, ainda é unilateral. Nenhuma destas duas tradições isoladas podem resolver todos os problemas da vida. A amalgamação destas duas correntes, contudo, é um desenvolvimento de profundidade histórica e cultural. A Índia apresenta, na forma do Tantra, uma filosofia de vida que é completa e perfeita em todos os aspectos e tem o potencial de resolver todos os problemas da existência.

É necessário clarear a concepção equivocada de que o Tantra é um caminho de indulgência porque ele aceita o prazer sensual e a satisfação material. O Tantra não é um caminho de indulgência, pois ele não defende um estilo de vida hedonista ou materialista. Tantra é a síntese do envolvimento e da renúncia. Isso significa que ele torna espiritual o material. A principal característica do yoga proposto pelo Tantra é a espiritualização da vida material.

É um erro gravíssimo ver o Veda como o caminho da renúncia e o Tantra como o caminho da indulgência. O Veda não advoga em favor da renúncia. Em seu cânone encontramos milhares de preces para prosperidade material; o ritual vêdico de sacrifício (yajña) em seu contexto original tem como finalidade exclusiva invocar essa prosperidade. Até mesmo as upaniṣads, que são tidas pelos acadêmicos vedantins como um produto da doutrina da renúncia, não proclamam a renúncia total da vida material. De fato, a Īśa-upaniṣad previne contra uma vida de pura renúncia e defende a síntese entre a renúncia e o envolvimento com o mundo: Aqueles que adoram a indulgência [avidyā] caminham nas trevas, mas aqueles que se ocupam da renúncia [vidyā] caminham em trevas mais profundas.3 O melhor caminho, portanto, é a reconciliação de ambos e no mesmo veio, a upaniṣad continua: Aquele que compreende tanto a renúncia quanto o envolvimento cruza a mortalidade com a ajuda do envolvimento e atinge a imortalidade com ajuda da renúncia.4 O fato é que tanto a renúncia quanto o envolvimento com o mundo se tornam meios de realização espiritual, não havendo dicotomia entre ambos. Isso suporta a conexão feita no texto anterior de que a filosofia tântrica está implícita, e às vezes explícita, nas upaniṣads. Os vedas e as upaniṣads não apresentam uma metafísica que nega a vida e nem concebem a Realidade ou Brahman como um agente inativo.


Notas

1. Veja no blog Anuttara Trika Kula o artigo Gṛhastha Brahmacarya & o Despertar da Śakti.

2. भोगो योगायते साक्षट् पातकं सुकृतायते।
मोक्षायते संसारः कुलधर्मे लुलेश्वरि॥, KT, II: 24.

3. अन्धन्तमः प्रविशन्ति ये अविद्यामुपासते।
ततो भूय इव ते तमो विद्यायां रताः॥, ĪUp, 9.

4. विद्यां चाविद्यां यस्तद्वेदोभयं सह।
अविद्यया मृत्युं तीर्त्वा विद्ययामृतमश्नुते॥, ĪUp, 11.

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